Tradição Moradores do Sítio de Pai Adão representam herança da Nigéria para o Recife Há mais de cem anos, descendentes dos fundadores do Conjunto Ritualístico do Ilê Obá Ogunté resistem à passagem do tempo, fazendo morada em um dos mais antigos terreiros do país

Por: Guilherme Carréra

Publicado em: 25/08/2015 14:50 Atualizado em: 27/08/2015 10:43

Sítio de Pai Adão teria sido fundado em 1875 pela nigeriana Inês Joaquina da Costa. Foto: Rodrigo Silva/Esp. DP/DA Press
Sítio de Pai Adão teria sido fundado em 1875 pela nigeriana Inês Joaquina da Costa. Foto: Rodrigo Silva/Esp. DP/DA Press

A história não lembra ao certo como Inês Joaquina da Costa foi parar na Estrada Velha de Água Fria, antes um matagal qualquer no Recife do século XIX. Rainha da etnia iorubá, pode ter fugido da guerra civil que assolava a Nigéria ou sido traficada como escrava para as terras de além-mar. Mas a memória dá seu jeito. No incerto ano de 1875, as imagens, sementes e divindades que Tia Inês trouxera consigo teriam ajudado à fundação do Ilê Obá Ogunté, considerado um dos mais antigos terreiros do Brasil. Tombado, inclusive, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Falecida em 1919, seu filho de santo Felipe Sabino da Costa, o Pai Adão, assumiu os cuidados ao culto. E os seis filhos dele foram os responsáveis por povoar o terreno do Sítio que até hoje leva o nome do pai. Nas 13 casas espalhadas pelo quintal, descendentes dos irmãos Sigismundo, José Romão, Maria do Bonfim, Guilherme, Malaquias e Aldomiro driblam não só a imprecisão da história, mas uma ou outra dificuldade que aparece pelo caminho. Mãe Luíza sabe como.

Aos 86 anos, ela é a ialorixá do Sítio de Pai Adão. Mãe de santo e mãe também de 11 filhos, com netos e bisnetos a perder de vista. Todos criados à sombra da gameleira secular que decora os fundos do terreno. Quando criança, frequentava o terreiro com os pais. Foi ficando, foi ficando, até que eles voltaram para casa e ela pediu para morar com a madrinha. Tinha nove anos e nunca mais saiu dali. "Era um paraíso. Pés de amora, manga, goiaba, pitanga...". Já moça, casou-se com Tomé Felipe da Costa, neto de Pai Adão. Viúva desde 1989, é a integrante mais antiga do clã Costa. Lá fora, pode não ter mais amora, manga, goiaba e pitanga, "mas em casa, nada mudou". A conversa é interrompida pela chegada de Ariel Wendel, 19. "Licença, a senhora pode me rezar?". É que Mãe Luíza é rezadeira. Senta no braço do sofá, ele fica de pé. Junta algumas folhagens e as passa pelo corpo do jovem, enquanto recita em voz baixa algo indecifrável ao leigo. "Volte amanhã no mesmo horário. Essa reza precisa ser feita por três dias consecutivos". Mãe Luíza sabe como.

Mãe Luiza é a ialorixá ou mãe de santo do terreiro tombado pelo Iphan. Foto: Guilherme Veríssimo/DP/DA Press
Mãe Luiza é a ialorixá ou mãe de santo do terreiro tombado pelo Iphan. Foto: Guilherme Veríssimo/DP/DA Press

Na varanda de outra casa, Maria José Silva, 57, lembra que esqueceu a cerveja fora da geladeira. Chegou do mercado, engatou o papo e as latinhas ficaram em cima da mesa da cozinha. "Com esse calor, ajuda a refrescar". Durante 37 anos, a pernambucana foi cidadã do Rio de Janeiro. De Bonsucesso a Vigário Geral. Nômade, está de volta desde o início deste ano. Trouxe o marido para ser hospitalizado no Recife. Aílton Raposo sofre do Mal de Alzheimer. Maria José é neta de Pai Adão. "Demorei 18 anos para voltar pela primeira vez. Quando cheguei e vi esses muros delimitando a área, estranhei. Antigamente, era tudo aberto". O crescimento desordenado do bairro de Água Fria, localizado na Zona Norte do Recife, forçou o isolamento. Ao ver os varais da vizinha desocupados, Iracema da Silva, 20, não se furta. Autorizada por Maria José, vai distribuindo as roupas da filha Bia, um ano e nove meses, com a ajuda de pregadores. "O pai dela é neto de Mãe Luíza. Não é, filha?", enquanto a pequena tropeça entre as folhagens que vão ser colhidas pela bisavó nos dois dias seguintes.

Mas não é porque Bia nasceu e está sendo criada no quintal do Ilê Obá Ogunté que seguirá os ensinamentos plantados por Tia Inês, cem anos antes. Ivonete Costa, 72, que o diga. O sobrenome, deixa claro, é só uma coincidência. Ela é uma das poucas que não tem parentesco com Pai Adão. "O senhor me desculpe não convidar para entrar, mas estou de saída para o dentista". A irmã Isaura, 67, a acompanha. As duas pertencem à Igreja Adventista do 7º Dia, com sede na Gervásio Pires, coração de Santo Amaro. Até há pouco tempo, a caçula Izonete, 62, fazia coro. Mas se desiludiu. "Ela agora é neutra". Durante anos, as três frequentaram as festividades a Ogum, em abril, Oxum, em julho, e Iemanjá, em novembro, clássicos do calendário do Sítio de Pai Adão. Um dia, deu vontade de experimentar outra fé. A convivência com os vizinhos, no entanto, permanece sossegada. É assim também para José Felipe da Costa, 30, ferreiro da oficina instalada entre uma casa e outra. Neto de Mãe Luíza, nunca foi ao candomblé. "Mas também não me considero evangélico. Sou um simpatizante".

Gameleira secular no quintal do Sítio de Pai Adão. Foto: Rodrigo Silva/Esp. DP/DA Press
Gameleira secular no quintal do Sítio de Pai Adão. Foto: Rodrigo Silva/Esp. DP/DA Press

No comando do Maracatu Nação Raízes de Pai Adão, Jorge Carneiro, 56, mora em frente ao terreiro de iorubá. "Não é da família, mas é como se fosse", comenta Gutemberg da Costa, 28, marido de Iracema e pai de Bia. No horário comercial, Gutemberg trabalha na construção civil. Nas horas vagas, é percussionista do maracatu liderado pelo amigo. Há dois anos, um grupo de 15 músicos e dançarinos viajou à Nigéria. Foi divulgar o trabalho realizado pelo maracatu, ao mesmo tempo em que teve a chance de conhecer as origens do próprio trabalho. Quem explica é o historiador João Monteiro. "Tive um artigo sobre a cultura iorubá no Recife aprovado para uma conferência no país. Perguntei ao professor anfitrião se não era possível levar representantes dessa tradição para o evento. Ele gostou da ideia, conseguiu a verba e nós fomos". A experiência despertou um desejo em Jorge: conseguir uma sede oficial para seu rebanho. "Precisamos que o governo do estado nos ajude com esse projeto". Eventos para chamar a atenção da sociedade à causa devem acontecer em breve.

Nos 5.370 m² do número 1644 da Estrada Velha de Água Fria, nenhum músico brilha mais do que Seu Walfrido, 100 anos. "De vez em quando, ele ainda toca", entrega Jorge. O senhor de boné, óculos e bengala chegou ali há décadas. "Sou do tempo em que só tinha luz quando a lua resolvia aparecer". A rotina do homem-século vai das 11h, quando abre os olhos, até as 4h, quando, enfim, pega no sono. À noite, a televisão é a companheira insone. Durante o dia, a saudade é do trabalho. "Fui pedreiro, cheguei a ser mestre de obras". Para não fugir à regra, Seu Walfrido também faz parte da ramificada família Costa. Sobrinho de Pai Adão, já não reconhece o entorno como aquele dos tempos de juventude. "Isso não é mais um sítio, é uma avenida". O que continua igual é a torcida pelo Santa Cruz Futebol Clube. "Uma pessoa de bom senso não muda de opinião assim". A gente concorda.

Seu Walfrido, 100 anos, é sobrinho de Pai Adão. Foto: Guilherme Veríssimo/DP/DA Press
Seu Walfrido, 100 anos, é sobrinho de Pai Adão. Foto: Guilherme Veríssimo/DP/DA Press



MAIS NOTÍCIAS DO CANAL