Saúde do sorriso Entre o lucro e a função social da profissão de dentista Seiscentos novos profissionais saem das faculdades por ano em Pernambuco, número que não repercute no volume ou na qualidade do atendimento. Sofre mais quem tem menos

Publicado em: 20/08/2015 11:50 Atualizado em: 20/08/2015 12:17

Para o Conselho Regional de Odontologia, o maior desafio da categoria, no Brasil, é de formação, que tem como foco uma abordagem técnica e pouco humanista. Foto: Rodrigo Silva/ DP/ D.A.Press
Para o Conselho Regional de Odontologia, o maior desafio da categoria, no Brasil, é de formação, que tem como foco uma abordagem técnica e pouco humanista. Foto: Rodrigo Silva/ DP/ D.A.Press
 

No país que concentra o maior número de dentistas do mundo, 25% das crianças nordestinas de 12 anos nunca visitaram um consultório e mais da metade da população da região - 62,5% - não foi ao dentista no último ano, como mostram, respectivamente, a Pesquisa Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil) e a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS). Em Pernambuco, onde a proporção é de um profissional para cada 1.125 habitantes e 600 novos dentistas se formam todos os anos, o cenário dissonante prevalece e se revela na coexistência de três realidades díspares, onde consultórios particulares, 'populares' e o serviço oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) convivem, com perspectivas e desafios próprios.

Posto da Ilha do Maruim, em Olinda: problemas de infraestrutura e atendimento. Foto: Prefeitura Municipal de Olinda/Divulgação
Posto da Ilha do Maruim, em Olinda: problemas de infraestrutura e atendimento. Foto: Prefeitura Municipal de Olinda/Divulgação
É no abismo deixado entre os atendimentos particulares – com infraestrutura e alta tecnologia e cujos valores são inacessíveis paras a maioria da população - e o serviço oferecido gratuitamente pelo SUS, que se firmam os dentistas “populares”. Com preços que chegam a custar 60% menos que outros serviços pagos, têm como público-alvo pessoas de menor renda, que procuram os consultórios, geralmente, em situação de emergência.

“Eles visam lucro. Apenas. O pensamento é que quanto menos se gasta, menos se perde, então a qualidade do material usado é muito mais baixa e é claro que o serviço não é o mesmo”, critica um profissional que atua no setor há oito anos e que não quis ser identificado. Ele conta que o consultório em que trabalha, no Centro do Recife, é mantido por empresários, investidores que não são do setor da saúde bucal. “Para especialidades (canais, por exemplo) eles ficam com 60%, e com 88% se for um atendimento clínico”, explica. “O atendimento é muito sistemático, não tem como ser diferente, não temos como acompanhar os pacientes, é jogo rápido”, conta o dentista.

Membro do Conselho Regional de Odontologia de Pernambuco (CRO-PE), Eduardo Vasconcelos diz que “é preciso separar o joio do trigo”. “Existem duas realidades nessas clínicas de bairro. Vai ter o profissional que está preocupado com as pessoas, de verdade, e tem outros que sequer são dentistas e tratam saúde bucal como empresa, negócio, são empresários que vão gerir lucros. O conselho está trabalhando muito em cima, para coibir essa mercantilização”, garante Vasconcelos, que considera antiético usar a expressão 'popular'. “O termo deve ser evitado, uma vez que aliciar pacientes, através de informação, anúncios ou atos que caracterizem concorrência desleal ou aviltamento da
profissão, especialmente a utilização da expressão 'popular', constitui infração ética”.

Com preços até 60% mais baratos, salas populares atraem pessoas de baixa renda. Foto: Cecília Sá Pereira/ Arquivo DP/ D.A.Press
Com preços até 60% mais baratos, salas populares atraem pessoas de baixa renda. Foto: Cecília Sá Pereira/ Arquivo DP/ D.A.Press
Para o CRO, no entanto, o maior desafio da categoria, no Brasil, é de formação. Segundo o conselheiro, trata-se de uma abordagem técnica e pouco humanista, que forma o profissional para trabalhar em consultórios, sem ser sensibilizado para a importância da saúde coletiva e da gestão. “Ações preventivas não são entendidas como questões coletivas. É um desafio para as escolas de formação fazer com que esse profissional olhe para o SUS não apenas como uma fonte de emprego, mas na perspectiva da saúde pública, do dentista como parte da transformação social”, provoca Vasconcelos.

Para o professor do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro do CRO-PE, tratam-se de duas perspectivas dentro da mesma profissão. “Tem um conceito que eu gosto muito que diz que uma coisa é odontologia e outra é saúde bucal”, afirma. Segundo ele, enquanto saúde bucal envolveria a ideia de promoção da saúde, evitando doenças e defendendo uma atuação coletiva, como fluoretação da água, a odontologia trabalha com a doença já instalada. “As faculdades ainda trabalham em cima de um modelo odontocêntrico, focado no dentista, no curativo. Eles não conseguem ver que você consegue atuar de outra forma. Você está aqui para evitar a doença”, defende.

Para ambos os profissionais, a transformação dessa realidade também passa pelo fortalecimento do serviço público. O SUS representa a principal fonte de emprego para a categoria e, ainda assim, não é atrativo para maioria dos profissionais. Isso porque ainda são empregos precários e muitos contratos temporários sem perspectiva de carreira, além das dificuldades já conhecidas de infraestrutura do atendimento.
Para Vasconcelos, no SUS, o principal desafio da categoria é a motivação, uma vez que a valorização dos profissionais não é estimulada. Ele cita que o repasse de programas de melhorias e avaliação da qualidade (PMAQ) do Ministério da Saúde não chegam integralmente aos dentistas que cumprem as metas. “O grande problema é nivelar aqueles que querem trabalhar para sociedade, produzindo mais, com aqueles que veem no serviço público um lugar pra ganhar remuneração, trabalhando o mínimo possível. Desestimula os profissionais sérios e comprometidos com a missão da profissão e do serviço público. É um modelo que premia aqueles que não servem à sociedade, descumprem cargas horárias com a desculpa de que são mal remunerados e/ou estão sob condições precárias de trabalho”, critica o conselheiro, que defende a remuneração dos dentistas pelo cumprimento de metas e a articulação de parcerias entre municípios e universidades para melhorar o serviço.

 





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