Entrevista Uma crítica ao poder do setor financeiro LUIZ GONZAGA BELLUZZO é economista e professor titular da Unicamp, que virá ao Recife para lançar seu novo livro, critica bancos e analisa política econômica

Por: Kauê Diniz

Por: Paula Losada - Diario de Pernambuco

Publicado em: 03/06/2017 12:56 Atualizado em:

Consultor pessoal de economia do então presidente Lula e da presidente Dilma Rousseff em sua primeira gestão, o economista e professor titular da Universidade Estadual de Campinas Luiz Gonzaga Belluzzo estará no Recife, no dia 9, para lançar seu livro Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo e participar de um debate na Universidade Católica de Pernambuco. Estará ao lado dos economistas Valdeci Monteiro e Tania Bacelar, além de Carlos Veras, presidente da CUT, responsável por trazê-lo juntamente com a Tempus Comunicação. Nesta entrevista, concedida ao Diario de Pernambuco por email, Belluzzo, entre outros assuntos, critica o poder do setor financeiro e as falhas da economia dita “científica”, avalia as políticas econômicas das gestões petistas e do governo Michel Temer, comenta sobre os 150 anos do livro O Capital, de Karl Marx, e fala da sua paixão pelo Palmeiras.

Professor, seu novo livro tem como título: Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo. Afinal, quem manda e quem obedece nessa sua lógica?
Começo minha resposta com um trecho do livro que reproduz um discurso do ex-presidente americano Fran-klin Delano Roosevelt. No Congresso do Partido Democrata em 1936, Roosevelt discursou sobre as ameaças da oligarquia financeira para a sociedade: “Era natural e talvez humano que os príncipes privilegiados dessa nova dinastia econômica, sedentos por poder, tentem alcançar o controle do próprio governo. Eles criaram um novo despotismo e o embrulharam nos vestidos de sanções legais. Em seu serviço, novos mercenários procuraram regimentar o povo, seu trabalho e sua propriedade.” Em seu livro Tempo Comprado: A Crise Adiada do Capitalismo Democrático, o sociólogo e economista alemão Wolfgang Streeck expõe as dificuldades impostas nos dias de hoje aos governos democraticamente eleitos, escandalosamente submetidos aos ditames dos mercados financeiros e da mídia-empresa. Esse aprisionamento enseja a divulgação das banalidades negativas sobre o Estado do Bem-Estar Social: o cobrador de impostos, competidor com o setor privado nos mercados de dívida. A lógica financeira determinou a subordinação da política fiscal à política monetária. Streeck aponta a origem da “transferência de poder” na estagflação dos anos 1970, quando o arranjo social e econômico das décadas anteriores foi desmanchado em nome da remoção dos entraves à livre operação dos mercados. Ao comentar a crise financeira de 2008, o sociólogo e economista italiano Luciano Gallino acusa o ideário neoliberal de atribuir às vítimas a responsabilidade pelo desastre. Eles afirmam: “Por muito tempo, vocês viveram acima de seus meios, referindo-se à medicina gratuita, às pensões públicas excessivamente generosas, ensino gratuito ou financiado com taxas mínimas de inscrição. Estas tecnologias de governabilidade buscam criar no maior número de pessoas um profundo sentimento de culpa, ao difundir a crença do ataque vampiresco dos menos favorecidos sobre o orçamento do Estado.”

No Brasil, é correto dizer que no final os bancos sempre lucram? Independentemente do país estar passando por um momento de prosperidade, como foi até uns cinco anos, ou em crise econômica, as instituições financeiras sempre fecham o ano com bilhões de superávit.
No Brasil e no mundo. No livro, Gabriel e o locutor que vos fala procuram mostrar que, antes e depois da crise, os que mandam continuaram a acumular renda e riqueza. Em estudo recente, o Instituto Roosevelt afirma que esse fenômeno caracteriza a economia global desde o início dos anos 1980. O crescimento do setor financeiro elevou seu poder sobre a economia real. A explosão do poder da riqueza e a rendição de toda a sociedade ao reino da finança reescreveram as regras da economia para diminuir o poder dos demais. O estudo aponta que os lucros no setor financeiro, que representavam menos de 10% do total dos lucros corporativos em 1950, cresceram para aproximadamente 30% em 2013. Em 1970 os cinco maiores bancos detinham 17% dos ativos bancários agregados, mas em 2010 passam a deter 52% (Dallas FED). No resto do sistema financeiro, o grau de concentração também mudou de escala. Nas últimas décadas, as ondas de fusões e aquisições elevaram o grau de centralização: os 25 maiores bancos do mundo tinham 28% dos ativos dos 1.000 maiores bancos em 1997; em 2009, mais de 45%. Dos US$ 4 trilhões de transações diárias com moedas, 52% delas são realizadas pelos 5 maiores bancos. No que tange aos bancos de investimento, os 10 maiores concentram 53% das receitas. Baseados principalmente em seus clientes mais ricos, já que os 10% mais ricos geram 80% de suas receitas, os bancos se conglomeraram e se tornaram verdadeiros supermercados financeiros, capazes de oferecer todo tipo de serviço financeiro a pessoas físicas e jurídicas. Em 2010, US$ 64 trilhões estavam nas mãos dos gestores de ativos, sendo que os 50 maiores tinham 61% do total e o Black Rock mais US$ 3,3 trilhões em ativos. Os fundos de investimento trilionários levaram a uma enorme centralização da propriedade. Os fundos adquirem participação nos mais diversos negócios, mas não se interessam pela gestão diária destes. Sua participação exige que a administração se submeta à lógica do EBITDA, da geração do máximo de caixa possível, e à busca incessante da valorização acionária. Transformam a gestão das empresas produtivas em uma gestão financeirizada.

O senhor foi consultor pessoal de economia dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff no início do primeiro mandato. Tem como avaliar e apontar o que deu certo e errado na gestão econômica do PT à frente da Presidência da República?
Nessa resposta vou reproduzir o que já disse e escrevi a respeito. É apenas um ponto-de-vista e não a palavra de Roma. Tenho aversão por sabichões e por suas sabedorias. Sendo assim, vamos lá: Nos idos de 2002, um clima de terror invadiu as eleições presidenciais. Os mercados e seus porta-vozes projetaram cenários apavorantes para os quatro anos de governo Lula. O risco-Brasil foi a 2,4 mil pontos-base, descolou da pontuação dos outros emergentes. Diante desse estado de espírito dos mercados e de seus porta-vozes, a equipe do presidente Lula concebeu a Carta aos Brasileiros. A transição, para surpresa de muitos e decepção de outros, foi feita com habilidade e prudência. Isso, sem dúvida, foi proporcionado por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável. Nesse ambiente benfazejo, o governo Lula, sobretudo no segundo mandato, manteve a estabilidade e alentou o crescimento. As reservas cambiais saltaram para US$ 289 bilhões, turbinadas pelo preço das commodities e pela entrada de capitais dispostos a apostar no futuro do emergente sul-americano. Mas há bens que vêm para o mal: a taxa de juros e a taxa de câmbio continuaram fora do lugar. A política econômica do governo Lula atingiu seu ponto de máxima ao adotar tempestivamente um conjunto de medidas destinadas a combater a crise do subprime, restaurando a confiança de empresários e consumidores. O governo utilizou com moderação a política fiscal e cuidou de recompor o fluxo de crédito. O ano de 2009 terminou com uma queda de 0,2% do PIB, com uma variação entre o último trimestre de 2008 e o derradeiro de 2009, de 4,3%. Agora, as políticas sociais: discordo dos que consideram o Bolsa Família e outras ações do governo Lula, como o ProUni, “assistencialistas”, para não falar da política de valorização do salário mínimo. Os avanços na redução das desigualdades e o incremento das oportunidades foram significativos diante do horror da miséria absoluta e da fome, do bloqueio sistemático do ensino superior aos “de baixo”. Mas ainda é pouco, se considerados os anseios da liberdade, da igualdade e da dignidade do homem contemporâneo. No governo Dilma, não há como desconsiderar as hesitações, entre 2012 e 2014, na definição dos novos projetos de infraestrutura e a penalização da Petrobras, afetada por uma despropositada contenção dos preços dos combustíveis. No crepúsculo de 2014, os formadores da opinião midiático-financeira instilaram a pré-verdade econômica nos ares de Pindorama. O consenso da “Turma da Caixinha” propalava o desastre: a economia cresceu apenas 0,5% e apresentou um déficit primário de 0,6% do PIB em 2014. A vitória de Dilma nas eleições aumentou a gritaria: desastre!! desastre!! Tanto clamaram pelo desastre que a política econômica da “Turma da Caixinha” foi executada com esmero pelo ministro Joaquim Levy. Dois anos depois, os incautos e crédulos descobriram que a Caixinha da Turma era a de Pandora. Aberta a Caixinha, os monstros ficaram à solta: o choque de tarifas voou lado a lado com o choque de taxa de juros de mãos dadas com a forte desvalorização cambial. Para não deixar barato, os preços desaforados convidaram os cortes em investimentos públicos para mais um Baile da Ilha Fiscal. A interação entre o choque de tarifas, a subida da taxa de juro, a desvalorização do real e o corte dos investimentos públicos determinaram a elevação da inflação em simultâneo à contração do nível de atividade e daí à restrição do crédito. O encolhimento do circuito de formação da renda levou inexoravelmente à derrocada da arrecadação pública. 

Como avalia a política econômica do governo Michel Temer, que prega a austeridade fiscal, inclusive propondo e aprovando uma PEC do Teto dos Gastos Públicos? Isso é o oposto do que o senhor pregava no Manifesto dos Economistas pelo Desenvolvimento e pela Inclusão Social, lançado após Dilma Rousseff ser reeleita, em 2014?
Os crentes pretendem infundir confiança ao setor privado, tirar da letargia “os espíritos animais” dos empresários. Rezam os fiéis que apascentadas as antecipações pessimistas a respeito da evolução do déficit fiscal e do crescimento da dívida pública, as expectativas revigoradas das empresas e das famílias trariam de volta o crescimento da produção e do emprego. Trata-se da fé inabalável nos “efeitos dinamizadores da austeridade fiscal”. Ela impõe o dogma da irrelevância dos multiplicadores de renda e emprego gerados pela elevação do gasto público em uma situação recessiva. Repito: em uma situação recessiva. Diga-se que já ultrapassamos esse patamar. Desde 2015, a economia brasileira mergulhou em uma trajetória depressiva. Os críticos mais otimistas das políticas de austeridade apostam em taxas de crescimento medíocres para os próximos anos, acompanhadas de desemprego elevado. Já os realistas temem um crescimento abaixo do medíocre, se é que vai haver algum. A procissão de padecimentos inclui a redução de salários, corte dos benefícios sociais, a ameaça de aumento de impostos, desemprego em alta. Desconfiam os ímpios que, aplicada no organismo de uma economia balbuciante, essa mezinha poderá deprimir ainda mais o consumo e o investimento privados, contrariando a “reversão de expectativas” almejada pelos que advogam os programas de austeridade fiscal generalizada. 

O discurso do governo Temer é de que as reformas são fundamentais para o futuro do país. Entre os argumentos para aprovar a trabalhista, daqueles que a defendem, seja do governo ou empresariado, por exemplo, é de que vão impulsionar novamente a geração de empregos. Porém, no fim de semana passado, houve na Espanha protesto de trabalhadores justamente alegando que a reforma trabalhista feita no país suprimiu o direito dos trabalhadores, precarizando os empregos, apesar dos números mostrarem uma queda no desemprego no país. Qual a sua opinião sobre as reformas trabalhista e previdenciária propostas?
Sob o véu diáfano da economia científica (sic) abriga-se no orçamento o conflito de interesses entre quem recebe e quem paga no esforço coletivo de construção da riqueza social e de sua distribuição entre agentes e pacientes. Uma Análise da Carga Tributária no Brasil publicada em 2015 pela Receita Federal apontou a maior incidência sobre bens e serviços, que representam 51,02% do total da carga tributária. Esses tributos incidem sobre os gastos da população na aquisição de bens e serviços, independentemente do nível de renda. Pobres e ricos pagam a mesma alíquota para comprar o fogão e a geladeira, mas o Leão “democraticamente” devora uma fração maior das rendas menores. Já os tributos incidentes sobre renda contribuem com parcos 18,02% para a formação da carga total, enquanto os impostos sobre o patrimônio representam desprezíveis 4,17%, superando apenas os tributos sobre transações financeiras, que contribuem com 1,61% da carga tributária. No liberal EUA, aproximadamente 45% da carga tributária incidem sobre a renda, lucros e ganho de capital e menos de 20% sobre bens e serviços. Na desenvolvida Dinamarca, a participação da tributação sobre renda, lucros e dividendos chega a quase 65% da carga. Para o Comando de Caça aos Direitos Sociais, são irracionais as demandas das camadas subalternas, aquelas que não cabem no Orçamento, flagrante no déficit de R$ 151,9 bilhões da Previdência Social em 2016. Após sete anos de superávits sucessivos, a Previdência Urbana fechou 2016 com déficit de R$ 46,8 bilhões, decorrente da queda de 6,5% na arrecadação e aumento de 7,4% nos gastos com pagamento de benefícios em relação a 2015. As bocas tortas do austericidio não se cansam de sugerir um envelhecimento súbito e sincronizado da população urbana em 2016. Seria mais honesto considerar o desemprego dobrado de 2014 para cá, combinado com o aumento de pedidos de aposentadoria – um clássico ante os anúncios de reformas que prometem penalizar os trabalhadores. A Previdência Rural, criticada como a principal responsável pelo chamado rombo, pagou R$ 113 bilhões em benefícios rurais e arrecadou R$ 8 milhões em 2016. Segundo estudo do Ministério do Desenvolvimento Agrário, 83,6% dos ocupados agrícolas brasileiros não contribuem para a Previdência, já que 67% não são assalariados. Ana Magalhães, da agência Repórter Brasil, realizou um trabalho edificante ao ir a campo e dar vida aos números da Previdência. O agricultor Espedito Eusébio de Souza, de 73 anos, ao entrar para o grupo de 9,5 milhões de pessoas beneficiadas pela Previdência Rural, retirou sua família da linha da miséria, não precisando mais caminhar 60 km do interior do Piauí até a divisa com Pernambuco em busca de “uma diariazinha”, e conseguiu pagar R$ 4.800 por um poço artesiano, em parcelas. Na cidade de Paulistana no Piauí, onde as aposentadorias rurais injetaram R$ 77 milhões no ano de 2016, a reportagem de Ana Magalhães observou a simbiose entre distribuição e formação da renda: segundo comerciantes do município as vendas aumentam 40% na época do pagamento dos benefícios. O Comando de Caça aos Direitos Sociais deflagra operações de busca e apreensão em todos os cantos da vida social. Vasculham também os direitos trabalhistas. A conversa do governo Temer sustenta que a reforma trabalhista vai criar mais empregos. Não é isso que um observador, mesmo desatento, vai descobrir nas experiências de reformas trabalhistas no resto do mundo. Na Europa e nos Estados Unidos, o crescimento dos trabalhadores em tempo parcial e a título precário, sobretudo nos serviços, foi escoltado pela destruição dos postos de trabalho mais qualificados na indústria de transformação. O inchaço do subemprego e da precarização promoveu o endurecimento das condições de vida do trabalhador. A evolução do regime do “precariato” constituiu relações de subordinação dos trabalhadores dos serviços – independentemente da qualificação – que se desenvolvem sob práticas da flexibilidade do horário, temperadas com as delícias do trabalho “em casa”. Essa “flexibilidade” torna o trabalhador permanentemente disponível para responder às exigências do empregador ou contratante. Assim, o admirável mundo da concorrência global e das tecnologias da informação lançou os dependentes nas masmorras da liberdade. Na edição de 3 de janeiro de 2015, a revista The Economist publicou uma matéria especial sobre as novas relações de trabalho. As práticas da “competitividade global” estão na raiz do desempenho sofrível dos rendimentos dos assalariados e da maioria dos que trabalham por conta própria. Isso se combinou com a aceleração do crescimento dos rendimentos do capital para produzir um inevitável aumento nos índices de desigualdade na distribuição funcional da renda. Conquistados a duras penas, na Europa e nos Estados Unidos pelas classes subalternas, depois de duas Guerras Mundiais e da Grande Depressão dos anos 1930, os direitos sociais e econômicos estão prestes a sofrer as dores dos projetos de “competitividade”. A mesma Economist, na edição de 4 de outubro de 2014, reconheceu a iminência da marginalização de mais de 50% da força de trabalho global. Nas considerações finais da matéria The State of the World, a revista advogou a interferência dos governos nas regras de distribuição do tempo entre “tempo de trabalho” e “tempo livre” e defendeu a destinação dos recursos fiscais para financiar políticas de renda mínima para os cidadãos ameaçados pelo abandono social e pela regressão civilizatória. 

Na sua opinião, qual seria o caminho para o Brasil sair da crise econômica?
A estabilização do nível geral de preços levada a cabo em meados dos anos 1990 livrou a economia brasileira da hiperinflação, mas não teve forças para eliminar a herança dos malfadados anos 1980. As condições em que foi realizada a estabilização custaram ao Brasil uma combinação perversa entre câmbio valorizado e juros estratosféricos, com graves prejuízos para o crescimento e a diversificação da indústria. O “afastamento” das transformações manufatureiras globais nos legou insuficiências em vários setores: infraestrutura de telecomunicações, móveis, PCs, computadores portáteis, tevês de plasma e LCD, câmeras digitais, componentes eletrônicos, para não falar da robótica, dos novos materiais e da nanotecnologia. No plano dito “microeconômico”, a organização empresarial brasileira distanciou-se das novas formações empresariais que surgem no âmbito da formação das cadeias produtivas globais. A reconfiguração do espaço global foi acolhida com eficientes respostas estratégicas nas economias asiáticas, sob a égide de agressivas políticas industriais e de exportação de manufaturados. No fim dos anos 1970, a produção e a exportação de manufaturados brasileiros eram próximas ou superiores às de seus concorrentes asiáticos. Hoje, esses países têm posições que são um múltiplo da produção e exportação brasileiras de manufaturados. A literatura relevante sobre processos de industrialização ou de (re)industrialização assinala a importância da ação do Estado na promoção das formas de financiamento, na educação, na criação de sistemas de inovação e nas políticas comerciais, leia-se, na abertura de oportunidades a serem capturadas pelas iniciativas do setor privado. Não é preciso lembrar ao leitor que essa foi a experiência de Alemanha, Japão, Coreia, China. A manutenção do câmbio real competitivo é condição necessária, porém, não suficiente para a constituição da nova política, mas deve ser complementada por um conjunto de ações governamentais executadas simultaneamente. A escolha das cadeias prioritárias é de suma importância. É reconhecido o potencial de inovação e da disposição para suportar riscos de alguns segmentos da vida empresarial brasileira. Falamos do agronegócio, da indústria de base e das sinergias que podem nascer das parcerias público-privadas nas áreas de infraestrutura. Essas políticas possuem características que permitem a concertação de ações voltadas para a qualificação das cadeias industriais.

Professor, o senhor já citou a Coreia do Sul e China como exemplos atuais de países que trabalham a economia com planejamento estrutural de longo prazo. Esses seriam exemplos para o Brasil seguir?
Há quatro décadas a China executa políticas nacionais de industrialização ajustadas ao movimento de expansão da economia “global”. As lideranças chinesas perceberam que a constituição da “nova” economia mundial passava pelo movimento da grande empresa transnacional em busca de vantagens competitivas, com implicações para a mudança de rota dos fluxos do comércio. Os chineses ajustaram sua estratégia nacional de industrialização acelerada às novas realidades da concorrência global. A experiência chinesa combina o máximo de competição – a utilização do mercado como instrumento de desenvolvimento – e o máximo de controle. Entenderam perfeitamente que as políticas liberalizantes recomendadas pelo Consenso de Washington não deveriam ser “copiadas” pelos países emergentes. Também compreenderam que a “proposta” americana para a economia global incluía oportunidades para o seu projeto nacional de desenvolvimento. Assim controlaram as instituições centrais da economia competitiva moderna: o sistema de crédito e a política de comércio exterior, aí incluída a administração da taxa de câmbio. Os bancos públicos foram utilizados para dirigir e facilitar o investimento produtivo e em infraestrutura. O leitor bem informado sabe que o chamado “modelo asiático” tem uma relação simbiótica com as transformações financeiras e organizacionais que deram origem às novas formas de concorrência entre as empresas dominantes da tríade desenvolvida, Estados Unidos, Europa e Japão. As andanças da nova concorrência responderam, sim, às politicas liberalizantes dos anos 80. E, em sua resposta, o movimento da grande empresa realizou o projeto de reconfiguração do ambiente internacional. A metástase do sistema empresarial da tríade desenvolvida – particularmente dos Estados Unidos e do Japão – determinaram uma impressionante mutação nos fluxos de comércio. Não se trata apenas de reafirmar a importância crescente do comércio intra-firmas, mas de destacar o papel decisivo do “global sourcing”, fenômeno que está presente, sobretudo, nas estratégias de deslocalização e de investimento que, desde a década dos 90, beneficiaram as economias asiáticas, a China em particular.

O senhor foi um dos palestrantes do 22º Encontro Nacional de Economia Política, realizado nesta semana, na Unicamp, que teve como tema central Os 150 anos do livro O Capital. Karl Marx continua atual ou suas ideias estão ultrapassadas para o mundo contemporâneo?
Em minha modesta opinião, O Capital de Marx continuará atual enquanto dure o capitalismo. Tão atual quanto a Teoria Geral de Keynes ou a Teoria do Desenvolvimento Capitalista de Joseph Schumpeter. Eu me divirto ao observar os embaraços dos que pretendem acorrentar esses três gênios nas cadeias de seu tempo. O Trio de Ferro, cada um à sua moda, não hesitou em mergulhar nas estruturas profundas desse sistema de produção e na sua dinâmica econômica e social. Os três não esconderam sua admiração pela capacidade criativa e transformadora do capitalismo, mas tampouco hesitaram em apontar sua tendência a produzir desigualdade, injustiça e angústia. Sim, angústia e dores provocadas por um sistema econômico e social que desperta desejos, esperanças e crenças no desempenho individual e coletivo, mas não consegue entregar o que promete, sobretudo quando se “entrega” a seus movimentos descontrolados. Os que reivindicam o aprisionamento de Marx, Keynes e Schumpeter em seus tempos não hesitam em dar sobrevida às teorias nascidas nos estertores do século 19, apoiadas nas falácias da estabilidade da economia capitalista. Falácias desmentidas clamorosamente pela sucessão de crises que acometeram o planeta ao longo dos últimos quarenta anos. Nosso livro é também uma investida contra as falhas lógicas e ontológicas da economia dita “científica”. O exemplo mais conspícuo desse fracasso ontológico e epistemológico foi sintetizado na resposta que o nobelizado Robert Lucas deu à indagação da rainha Elizabeth II, depois da crise. Em visita à London School of Economics, a rainha perguntou por que os economistas não haviam previsto a crise. Lucas respondeu em um artigo na revista The Economist em 2009: “A crise não foi prevista porque a teoria econômica prevê que esses eventos não podem ser previstos”.

Como um ex-seminarista da Companhia de Jesus, como o senhor, vê as críticas do papa Francisco ao capitalismo?
Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon, Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”. Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, nos meus tempos de seminarista, o Cristo esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII. Parece ter retornado nos exemplos de Francisco. Francisco rejeita as formas de religiosidade que fazem recuar o espírito para os recônditos do individualismo, uma espécie de “consumismo do sagrado”, que ignora os fundamentos comunitários do cristianismo. “Mais do que o ateísmo, o desafio que hoje se nos apresenta é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro. Se não encontram na Igreja uma espiritualidade que os cure, liberte, encha de vida e de paz, ao mesmo tempo que os chame à comunhão solidária e à fecundidade missionária, acabarão enganados por propostas que não humanizam nem dão glória a Deus”. Um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro é a negação do cristianismo. No seu livro Homens em tempos sombrios, Hannah Arendt dedicou um capítulo a João XXIII intitulado Angelo Giuseppe Roncalli: Um cristão no trono de São Pedro de 1958 a 1963. Nesse ensaio, Arendt, entre outras narrativas a respeito de Angelo Roncalli, conta o depoimento colhido de uma camareira do hotel em que se hospedava em Roma: “Senhora”, disse ela, “esse papa era um verdadeiro cristão. Como podia ser isso? E como aconteceu que um verdadeiro cristão se sentasse no trono de São Pedro? Ele primeiro não teve de ser indicado bispo e arcebispo, e cardeal, até finalmente ser eleito como papa? Ninguém tinha consciência do que ele era?” Felizmente, ninguém percebeu.

Por último, fugindo um pouco do tema político-econômico, o senhor continua acompanhando de perto o futebol ou se afastou totalmente após os anos que ficou à frente do Palmeiras?
Seria impossível contar minha trajetória pessoal, desde a primeira infância, sem o Palmeiras. Há duas semanas estive no rival Corinthians para um debate a respeito dos 100 anos do Derby. Pois, vivi 70 anos desse choque centenário. Como posso me afastar de minha alma verde e branca? Na última quarta-feira, padeci as dores da sofrida classificação diante do Internacional. Felizmente, minha experiência de cartola deixou intacta minha paixão. A paixão é tamanha que me afastei da politicagem do clube. Sempre que faço exame de consciência para investigar meus pecados, não encontro um sequer praticado a dano do Palestra. Imagino, porém, que os inimigos da Turiaçu e os adversários no campo de jogo ainda lancem imprecações contra a vitoriosa co-gestão com a Parmalat e a construção da Allianz Arena.
 


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