Política "Miguel Arraes fez muitas restrições ao PT. Muitas mesmo", diz Fernando Henrique Cardoso ao Diario Em entrevista exclusiva, o tucano fala sobre o apoio que recebeu do ex-governador Arraes, diz que os políticos do NE não têm a força de antes, e sai em defesa de Marco Maciel

Por: Tércio Amaral

Publicado em: 02/11/2015 20:46 Atualizado em: 03/11/2015 10:10

Ex-presidente conta que, ao selar aliança com o senador Aécio Neves nas eleições de 2014, o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos estaria seguindo a "cartilha do avô". Foto: Ana Rayssa/Esp.CB/D.A. Press
Ex-presidente conta que, ao selar aliança com o senador Aécio Neves nas eleições de 2014, o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos estaria seguindo a "cartilha do avô". Foto: Ana Rayssa/Esp.CB/D.A. Press

No momento em que a atual presidente Dilma Rousseff (PT) enfrenta uma grave crise política, uma declaração mostra que antigos aliados já não confiavam no modo de gestão dos petistas. Mesmo apoiando oficialmente a candidatura do então candidato e agora ex-presidente Lula (PT) à Presidência da República, nas eleições de 1998, o ex-governador Miguel Arraes (PSB) queria mesmo era a reeleição e a renovação do mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Esta é uma das revelações do primeiro volume dos Diários da Presidência (1995-1996), publicado recentemente pela Editora Companhia das Letras, sobre os anos em que o tucano era o político mais importante do país. “Eu era amigo da irmã dele, Violeta, ainda em Paris, e tinha sido professor dos seus filhos na França. Eu sempre tive uma relação respeitosa e boa com ele. Ele sempre foi cooperativo administrativamente comigo. Havia divergências porque os partidos tinham divergências. Mas as pessoas não têm noção de como se dá o processo real da política”, disse FHC, por telefone, ao Diario. Na entrevista, o tucano também fala da relação com o seu vice-presidente, o ex-governador de Pernambuco Marco Maciel (DEM), sua visão sobre o Nordeste e o seu percurso intelectual - sobre o sociólogo Gilberto Freyre, por exemplo, assume ter revisto pontos a favor do "mestre de Apipucos" -, além do quadro político atual. “O cenário é nebuloso. Não dá para fazer apostas. É preciso ter uma agenda para sair da crise. Não adianta só substituir uma pessoa por outra. É preciso mudar o rumo da economia, da sociedade brasileira”. 

Gilberto Freyre fez um diário de adolescência, o presidente Getúlio Vargas fez um diário, os ingleses têm o hábito de escrever diários. Seus diários da presidência são de inspiração inglesa, de Freyre ou de Vargas?

Foi da neta do Getúlio. Celina Vargas do Amaral Peixoto, minha amiga, socióloga e cientista política. Logo no primeiro ano do governo, ela me levou um fax (ainda se usava fax) de uma página de um diário de Getúlio que ainda não tinha sido publicado; me levou um caderno e um lápis, e pediu que eu fizesse o mesmo que o avô. Eu percebi que era difícil fazer aquilo com o lápis, a velocidade da vida era outra. Então, eu decidi gravar. Celina me inspirou.

No primeiro volume dos seus diários, que foi publicado recentemente, há um registro de uma conversa sua com o então governador Miguel Arraes (PSB), na qual ele diz que vai apoiar sua reeleição. Mesmo sendo de campos diferentes (Arraes era da oposição), podemos dizer que vocês tinham uma relação desconhecida do público?

É verdade. Muito melhor (a relação dos dois). Eu era muito amigo da Violeta,  a irmã dele, que morava em Paris. Violeta era uma das melhores amigas de minha mulher (a socióloga Ruth Cardoso, falecida). E eu tinha sido professor dos filhos do Miguel na França. Eu sempre tive uma relação respeitosa e boa com ele. Ele sempre foi cooperativo administrativamente comigo. Havia divergências porque os partidos tinham divergências. Mas as pessoas não têm noção de como se dá o processo real da política. Pelo meu livro aí você vê. Na verdade, eu sempre procurei ajudar a administração do Miguel aí em Pernambuco. Uma vez ele fez um discurso público agradecendo o que eu tinha feito. Enfim, tínhamos boas relações.

Nesse comentário, Miguel Arraes ainda diz que quer fazer do PSB um contraponto ao PT no campo da esquerda…

Ele sempre pensou nisso…

Esse é um pensamento que podemos dizer que Eduardo Campos (ex-governador de Pernambuco) colocou em prática recentemente nas eleições de 2014. Eduardo Campos seguiu a cartilha do avô ao se aproximar de Aécio Neves nas eleições presidenciais?

É verdade. Não tenha dúvida. O avô fez muitas restrições ao PT. Muitas mesmo. Assim como ele não tinha nenhum entusiasmo pelo Ciro Gomes (ex-ministro e ex-governador do Ceará). 

Tucano diz que a relação com a família Arraes foi desde o tempo do regime militar (1964-1985) e, apesar de estarem em campos opostos na política, amizade foi mantida. Foto: Otávio de Souza/DP/D.A. Press/Arquivo
Tucano diz que a relação com a família Arraes foi desde o tempo do regime militar (1964-1985) e, apesar de estarem em campos opostos na política, amizade foi mantida. Foto: Otávio de Souza/DP/D.A. Press/Arquivo

Na eleição de 2010, Marco Maciel perdeu a reeleição para o Senado e saiu da vida pública. Foi uma campanha virulenta, inclusive, pelo ex-presidente Lula, que associava o nome de Maciel ao passado, dizendo que ele era um senador “desde o tempo do império”. Na sua avaliação, foi desmerecida a forma como Maciel saiu da vida pública?

Foi muito desmerecida. Marco Maciel foi um homem público de muita qualidade. Sempre foi um respeitador da lei. Não me espanta que o Lula o atacasse porque o Marco representa, em termos de comportamento, o oposto do que estamos vendo no comportamento de algumas pessoas do PT. O Marco sempre foi um homem correto comigo. Comigo ele era de uma correção total. Eu viajava incessantemente, ele assumia a Presidência, eu não tinha a menor preocupação com isso, ele levava as coisas com muita probidade e com muito senso de lealdade. Embora nós discordássemos de pontos de vista filosóficos, às vezes, em certas áreas, isso não implicava um comportamento que, digamos assim, fosse virar regra quando ele me substituía. Muito pelo contrário. Eu só tenho agradecimentos ao Marco. Ele era um homem público muito bom e Pernambuco deve muito a ele. Ele tinha uma preocupação permanente com Pernambuco.

Tem algum fato marcante que seria bom nos contar com Marco Maciel?

Para começar, houve uma substituição do Guilherme Palmeira (na época, senador do PFL de Alagoas) pelo Marco. Dentro do PSDB, havia algumas dúvidas porque no passado ele tinha raízes… no passado do período autoritário. Eu posso te assegurar que, primeiro, eu aceitei com razoabilidade que ele fosse meu vice, e, segundo, ele nunca, nunca mesmo, deixou de ter um comportamento absolutamente democrático. Agora, ele era um homem como ele é. Um homem muito reservado. Por exemplo, quando a gente estava viajando de avião, você sabe que presidente e o vice não podem viajar juntos, não é? Mas quando ele viajava antes disso, em ocasião de campanha, ele sempre ficava rezando um terço. Ele era um homem muito religioso. E às vezes ele fazia uma missa para a bancada católica no Congresso. Ele pedia que eu fosse. Eu ia, de respeito a ele e às religiões. Enfim, nós nos demos muito bem, o tempo todo. Eu acho que o Marco é um homem público de mérito. Claro que você vê que a vida é curiosa. Miguel Arraes e Marco nunca se entenderam. Não obstante, tanto um como outro eu respeito. Cada um com seu modo e suas divergências ideológicas tinham sentido público. Isso é que é importante.

Nos diários, após uma reunião com Marco Maciel, o Sr. diz que a região Nordeste é um “nó que ninguém desata”. O Senhor teve problemas de articulação política na região Nordeste?

Não foi só de articulação política. Você tem a grande questão do atraso relativo do Nordeste em relação a outras regiões do Sul. Não se esqueça que o grande marco da mudança tinha sido a Sudene de Celso Furtado. Mas com o tempo, a Sudene e a Sudam se transforam em instrumentos da oligarquia local, os interesses privados locais. Então, já não era um polo de desenvolvimento. E, numa discussão muito grande, logo no início do governo, e posteriormente, quando foi criada a Secretaria de Integração Regional, a gente desenvolveu a questão do Nordeste. O Benedito Veras, que foi senador pelo Ceará, era uma pessoa extremamente respeitável e eu o ouvia muito, e também o Krause (ex-governador) ministro, aí de Pernambuco, eles tinham uma visão correta de que as políticas regionais no Brasil de hoje têm que estar inseridas num cenário global. Não tem que ter um órgão regional. Tem que ter um Ministério do Planejamento. Tem que ser o governo no seu todo que tem uma política que leve a maior igualdade. Então, cada vez que esse problema se colocava, os políticos regionais queriam outra coisa. Primeiro, que eu designasse alguém de seu estado. A função principal era tradicional, de garantir que pessoas ligadas ao seu grupo partidário assumisse funções-chave. E essa não era minha vida, de que pessoas estavam aqui ou acolá. A política acaba prevalecendo. E isso não era fácil. Por outro lado - eu chego a dizer em algum momento (nos diários) - visto do exterior, parece que o Nordeste tem unidade. Visto concretamente, cada estado tem seu interesse. Então é muito difícil lidar com a questão. Não só o Nordeste. Porque tem uma outra questão, uma característica: os políticos do Nordeste são muito competentes. E têm um poder grande. Sempre tiveram. Na República. Talvez, porque o Norte, o Nordeste também, dependam mais de políticas públicas do que do mercado, eles tiveram mais proeminência do que os políticos do Sul e do Sudeste.

FHC sai em defesa do seu ex-vice-presidente, o ex-governador de Pernambuco Marco Maciel. "Marco representa o oposto do que estamos vendo no comportamento de algumas pessoas do PT". Foto: Joédison Alves /CB/D.A. Press
FHC sai em defesa do seu ex-vice-presidente, o ex-governador de Pernambuco Marco Maciel. "Marco representa o oposto do que estamos vendo no comportamento de algumas pessoas do PT". Foto: Joédison Alves /CB/D.A. Press

E essa força dos políticos do Nordeste ainda existe hoje?

Diminuiu muito, né? Se integrou muito mais. Hoje o Nordeste tem muito mais meios de integração econômica e relativamente prosperou, mas a pobreza continua. É uma dor de cabeça permanente do Brasil.

O Senhor é sociólogo de formação e fez parte da Escola de Sociologia Paulista. O Nordeste tem forte influência da escola Regionalista do também sociólogo recifense Gilberto Freyre, que valorizava a identidade local do nordestino. Esse distanciamento do Sul/Sudeste é influência do pensamento de Gilberto Freyre entre os intelectuais da região?

Gilberto Freyre está vivo. Recentemente eu fiz uma conferência sobre ele. Há uns anos atrás, eu publiquei um livro ‘Os pensadores que construíram o Brasil’, eu reproduzo essa conferência, se é possível dizer assim, fazendo uma mea culpa, no caso, do Gilberto. A Escola de Sociologia Paulista tinha muita distância do Gilberto. E você lendo o Gilberto agora, relendo, a despeito das críticas que tínhamos, algumas delas eu mantenho, ele teve uma visão muito grandiosa do Brasil, ele fez uma imagem grandiosa do Brasil que até hoje tem muita presença e muita proeminência. Mas sem dúvida, houve um desenvolvimento intelectual um pouco específico, regional, no Nordeste. Não só de agora, desde Silvio Romero já se falava disso. Eu diria até que a intelectualidade do Nordeste antecipou-se, em algumas questões, à intelectualidade do Sudeste. Hoje, acho que as coisas são mais integradas.

E por falar no Nordeste, eu queria uma avaliação do Senhor do quadro político da região. Na última eleição, a presidente Dilma (reeleita pelo PT) conquistou 20 milhões de votos, enquanto o senador Aécio Neves (candidato do PSDB) ficou com 7 milhões. O PT corresponde esses votos dados pela região?

Certamente não. Eu duvido que repita, né? Porque esses votos eram muito de um futuro cor de rosa, de uma campanha em que a 'ameaça' vinha do candidato que comprometeria os avanços sociais, especificamente, o povo mais pobre. E são duas inverdades que a população agora está vendo. Primeiro, ela não tinha condição de manter a mesma política por falta de dinheiro e, por outro lado, é possível que o outro não seguisse o mesmo roteiro. Lendo todos os volumes dos meus diários (esse é só o primeiro volume), você vai ver que eu sempre tive uma preocupação muito grande com a questão social. Quem inventou a difusão das bolsas foi eu. A visão do PT era outra, eles tinham um programa na época chamado Fome Zero, que nunca existiu. Quando eles perceberam, um ano depois, que não funcionou, eles aderiram às bolsas, enfim. O que se difundiu na campanha passada foi o oposto. Então, é claro que o eleitor apostou… sete a vinte, como você apontou, é uma diferença enorme, a favor do governo do PT e dos seus aliados. Isso não repete mais.

Para terminar, como o Senhor avalia o cenário político nebuloso de hoje? Dilma consegue terminar seu mandato?

Eu acho que você usou a expressão certa. É nebuloso. É muito difícil fazer uma aposta. Agora o que é sensível é que, se nada for feito, a crise continua e avança, que é a crise política e econômica que tem um aspecto moral. Esse aspecto moral está sendo exposto aí pela Operação Lava-Jato. Então, no Brasil, hoje estamos movidos pela crise econômica e pela Lava-Jato. Os políticos perderam o domínio da situação. A presidente Dilma, desde o início do governo, a meu ver, deveria ter chamado todo mundo, aberto o jogo e dito que estava numa situação difícil, falei na campanha coisas erradas, mea culpa, vamos juntos, vamos em frente. Não fez isso. Agora estamos num momento em que a população não apoia o governo e até centraliza na presidente Dilma erros que muitas vezes não são dela, às vezes, são de assessor ou da conjuntura e não dela. Então, ela simboliza pouca capacidade de ser aceita pela população. E no Congresso nós temos uma colcha de retalhos, mais de 30 partidos. Isso é inviável. Não existe comando. Está uma falta de rumo. Para sair dessa crise, é preciso recuperar o rumo. E para recuperar o rumo, você tem que ter uma agenda nacional. Ainda bem que ontem eu vi o PMDB, hoje eu li, lançou algumas ideias que coincidem com a nossa em muitos pontos. É preciso ter uma agenda para sair da crise. Não adianta só substituir uma pessoa por outra. É preciso mudar o rumo da economia, da sociedade brasileira.



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