TERRAS

Estrangeiros detêm um Rio de Janeiro em terras no País

Levantamento mostra que, apesar da desconfiança demonstrada por Bolsonaro em relação aos chineses, eles têm fatia pequena

Por: AE

Publicado em: 17/12/2018 12:06 | Atualizado em: 17/12/2018 12:09

São Paulo está entre as regiões favoritas dos estrangeiros. Foto: Alexandre Carvalho/Governo de São Paulo
As declarações feitas pelo presidente eleito Jair Bolsonaro de que haveria necessidade de frear o avanço chinês sobre "nossas terras agricultáveis", porque "a segurança alimentar do País está em risco", estão longe de refletir a realidade fundiária do Brasil. Levantamento realizado pelo jornal O Estado de S. Paulo por meio de dados oficiais do governo federal mostra que a China tem atuação quase irrelevante quando o assunto é comprar ou arrendar terras para produzir no País.

Na prática, na verdade, a venda de terras para estrangeiros está praticamente estagnada desde 2010, por conta das duras regras vigentes sobre esse tema. A flexibilização dessas regras é, até, uma demanda do próprio agronegócio que apoia Bolsonaro: os produtores querem abrir a porteira para entrada de investidores internacionais, o que não ocorre hoje.

Existem hoje no País 28.323 propriedades de terra em nome de estrangeiros. Juntas, essas áreas somam 3,617 milhões de hectares. Seria o mesmo que dizer que, atualmente, uma área do território nacional quase equivalente à do Estado do Rio de Janeiro está nas mãos de estrangeiros. 

Desse total, 1,293 milhão de hectares está em nome de pessoas físicas, enquanto os demais 2,324 milhões de hectares aparecem em nome de empresas. A presença internacional é notada em 3.205 municípios, ou seja, o investidor estrangeiro já está presente em 60% dos municípios do Brasil.

Os números vêm de um cruzamento de informações feito pelo jornal O Estado de S. Paulo a partir do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), banco de dados administrado pelo Incra, órgão responsável pelo controle da aquisição e do arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros no Brasil. 

Foram obtidas informações sobre as áreas compradas ou arrendadas localização, quem são os donos internacionais dessa terra e para que a utilizam. O balanço foi validado e enviado à reportagem pela Divisão de Fiscalização e de Controle das Aquisições por Estrangeiros do Incra.

Não é a China, mas sim o Japão, por exemplo, um dos grandes compradores internacionais de terras brasileiras. Entre as mais de 28 mil áreas declaradas por donos estrangeiros, 6.912 estão em nome de japoneses. Ou seja, de cada 5 áreas, uma está em nome dos japoneses. Em termos da área ocupada total, porém, essa participação japonesa é menor, com 368.873 hectares, 10% do total. 

Países como Portugal, Espanha, Alemanha, Holanda, EUA, Argentina e Líbano lideram o mapa das terras de estrangeiros. Os chineses surgem no balanço com apenas 664 propriedades no País, somando 10.126 hectares. 

Os dados do Incra guardam algumas imprecisões, uma vez que, até 2015, os registros de terras limitavam-se a ser um ato declaratório do dono. Alguns registros mais antigos não apontam o país de origem do investidor ou a área total da posse, por exemplo. Isso indica que a área ocupada por estrangeiros tende a ser maior. Nos últimos anos, o Incra tem pressionado os proprietários para atualizarem suas informações.

Avaliação
As conclusões do mapeamento não surpreendem especialistas. "O chinês nunca foi um comprador ativo de terras no Brasil. O foco do investidor chinês está em energia elétrica, em concessões de infraestrutura, mas não vemos muita ação em aquisição de terra", diz Márcio Perin, coordenador da área de terras da consultoria Informa Economics IEG/FNP, especializada no agronegócio. 

Para o analista da consultoria em commodities agrícolas ARC Mercosul, Tarso Veloso, baseada em Chicago (EUA), o investidor estrangeiro, em especial o americano, teria interesse em investir em terras no Brasil, mas tem enfrentado dificuldades. "A falta de uma legislação mais aberta evita que muitos deles optem por ter um parceiro brasileiro, o que reduz os aportes." 

A entrada de chineses ou não nas terras brasileiras está travada por conta de um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU), de 2010, ano em que a empresa Chongqing Grain Group, da China, chegou a anunciar planos para aplicar US$ 300 milhões na compra de 100 mil hectares no oeste da Bahia, para produzir soja. 

Para evitar a "invasão estrangeira" no País, a AGU decidiu restabelecer restrições de compra e arrendamento, proibindo que grupos internacionais obtenham o controle de propriedades agrícolas no País. 

No ano passado, o governo de Michel Temer tentou avançar com uma proposta de liberação das terras para estrangeiros. O projeto de lei previa que o investidor estrangeiro poderia comprar até 100 mil hectares de terra para produção, podendo ainda arrendar outros 100 mil hectares. Esse projeto, no entanto, está parado no Congresso. 

O tema é polêmico e divide opiniões. Até 1998, uma lei de 1971 permitia que empresas estrangeiras com sede no Brasil comprassem terras no País. Naquele ano, a AGU interpretou que empresas nacionais e estrangeiras não poderiam ser tratadas de maneira diferente e, por isso, liberou a compra. Em 2010, a AGU mudou de posicionamento, restabelecendo o entendimento original.

Naturalização para garantir área maior

Depois de 20 anos morando e trabalhando no Brasil, o holandês Jacobus Johannes Hubertus Derks achou que era hora de construir um patrimônio. Com o dinheiro economizado na criação de vacas de leite e porcos, com os pais e irmãos, numa pequena propriedade de Holambra (SP), em 1976, ele pretendia comprar uma grande área em campos ainda inexplorados de Paranapanema, no sudoeste paulista.

Ao fechar o negócio, soube que só poderia adquirir 45 hectares, área menor que a pretendida. "Como era estrangeiro, só pude comprar três módulos rurais, o máximo permitido por lei. Era uma boa terra, mas insuficiente para os nossos projetos."

Derks e a esposa tiveram de se tornar brasileiros naturalizados para fazer novas compras de terras. "Nós já tínhamos residência contínua aqui, convivíamos com os brasileiros e gostávamos do país, mas havia essa limitação. Então nos tornamos brasileiros naturalizados, mas não foi só pela terra", disse. 

Com a naturalização, Derks investiu na compra de novas áreas até tornar-se um grande produtor de grãos e algodão em sua propriedade, a Fazenda Amarela Velha. Mais tarde, adquiriu também terras na região de Unaí (MG). Aos 68 anos, Derks repassou a gestão dos negócios agrícolas aos dois filhos brasileiros, Thiago e Thomas.

Ele conta que muitos imigrantes holandeses vieram para o Brasil depois do fim da 2.ª Guerra em busca de trabalho e oportunidade. "Na época, o Brasil aceitava os imigrantes, até para formar colônias e trabalhar a terra. Não eram todos os países que aceitavam." Seus pais migraram com os cinco filhos - ele tinha apenas três anos. "Hoje, com a situação muito estável na Europa, a vinda de europeus para o Brasil diminuiu muito. Quem está investindo em grandes áreas de terra são grupos multinacionais."

Grato ao País, em 2013 o produtor rural usou sementes de cereais como trigo, triticale, aveia e canola para formar, em sua fazenda, uma gigantesca bandeira brasileira, com 890 metros de comprimento por 680 metros de largura, numa área equivalente a 70 campos de futebol. 

Sem burocracia. O italiano Claudio Poli, que mora na região de Treviso, norte da Itália, conta que não teve nenhuma dificuldade para comprar um sítio de 3 hectares, no bairro Rio Una de Cima, em Ibiúna, interior paulista, em 2002. "Na época, passei uma procuração para uma cunhada brasileira e ela cuidou de tudo. Só estive lá para conhecer a propriedade, mas o negócio foi fechado à distância", disse. 

Poli tinha planos de explorar o sítio com turismo e piscicultura mas o projeto não seguiu adiante. "Vendi alguns anos depois como comprei, sem nenhum problema." O italiano acredita que foi dispensado de mais formalidades por se tratar de área pequena.

O iraquiano Nawfal Assa Mossa Alssabak também se naturalizou brasileiro antes de comprar terras no bairro Rio da Várzea, em Pereiras, onde instalou o maior criatório de frangos de corte do Estado de São Paulo, com 1 milhão de aves alojadas. Nawfal está desde 1982 no País e se naturalizou em 1990. A fazenda foi adquirida dez anos depois e a maior parte dos funcionários é de brasileiros. Procurado, Nawfal informou que não falaria sobre seus negócios.

Entre 1998 e 2016, estrangeiros de 40 países compraram 10.132 propriedades rurais no Estado de São Paulo, segundo dados do Incra. A grande maioria - mais de 95% - tinha área inferior a 100 hectares. 

O maior número de compras foi registrado em 2002. Os japoneses lideraram as compras, seguidos pelos portugueses, italianos, espanhóis e alemães, mas há registro de aquisição de áreas também por declarantes da Rússia, Jordânia, Coreia do Norte e Cingapura, além de países africanos.

A maior propriedade, a fazenda Chácara Arco Íris, com 62,4 mil hectares, foi adquirida em novembro de 2002 por um grupo japonês. Segunda maior área, a Fazenda Guapiara, com 21,2 mil hectares, foi comprada por um suíço em março de 1997.
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