Rota crítica do aborto

Olímpio Barbosa de Moraes Filho
Professor Adjunto da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco, Gestor Executivo do CISAM (Maternidade da Encruzilhada)

Publicado em: 12/09/2018 03:00 Atualizado em:

Trabalho há quase 30 anos numa unidade de ensino da Universidade de Pernambuco, onde disponibilizamos o aborto previsto em lei desde 1996, sendo o primeiro serviço de aborto legal consolidado fora do eixo Rio-São Paulo. É devido à minha experiência, estudos e pesquisas que posso afirmar: descriminalizar o aborto é imprescindível para que as políticas de planejamento reprodutivo sejam mais efetivas. No Brasil, 30% das mulheres engravidam sem desejar a gravidez e em torno de 250 mil mulheres são internadas em nossa maternidade devido às complicações. Quando uma mulher com uma gravidez indesejada ou um aborto busca um serviço de saúde, ela entra no que se chama de rota crítica do aborto. É neste momento que se pode entender o que a levou a não querer continuar com sua gravidez. Através da escuta sem julgamento e acolhimento respeitoso, tem-se a chance de descobrir se a gravidez foi fruto de uma violência sexual, de uma relação não consentida, ou da falta de informações sobre planejamento reprodutivo e, a partir daí, prover informações sobre a melhor maneira de lidar com a situação vivida por aquela mulher. A entrada da mulher na rota crítica do aborto é o momento crucial para quem busca a diminuição dos números de aborto. Estamos falando do momento chave de prover informações e assistência a cada mulher, para que aquela situação não volte a se repetir. Não sobra espaço para diálogo se estamos lidando com uma prática que é crime e que enfrenta um forte estigma moral. A criminalização impede que a rota crítica seja um momento de proteção e cuidado, e inclusive de prevenção de um segundo aborto. As mulheres que realizam abortos, hoje, temem os profissionais de saúde e não nos procuram. E aquelas, sem saída, não contam sua verdadeira história. Receiam ser julgadas, denunciadas e até presas. Lembro que sem confiança e sem confidencialidade não há medicina. Preciso dizer que nenhum médico pode faltar com a confidencialidade ou sigilo da paciente, mas nem sempre é assim. Dessa forma, perde-se uma oportunidade ímpar para realizar ações de planejamento reprodutivo. Quando a mulher que já provocou um aborto continua sem orientação e acesso a métodos anticoncepcionais efetivos, seguros e de longa duração, como o DIU, as chances de uma nova gestação indesejada e um outro aborto inseguro, em pouco tempo, são elevadas. E o pior, muitas morrem ou são vítimas de sequelas graves, em decorrência do retardo do diagnóstico e da falta de tratamento tempestivo e adequado. Não à toa, os países de leis mais restritivas são também aqueles com as maiores taxas de aborto. Ou seja, por motivo da criminalização do aborto, a mulher não procura ajuda na Rede de Saúde e resolve o seu problema na clandestinidade, sem acesso e orientação a métodos contraceptivos de elevada efetividade, o que perpetua o ciclo de vulnerabilidade. Ninguém é a favor da morte ou do aborto. Todos nós queremos diminuir os números de abortos no Brasil, porque somos todos a favor da vida. Como médicos, temos o dever ético de defendê-la. A diferença crucial é como escolhemos enfrentar o problema do aborto. A forma mais efetiva para diminuir esta calamidade é tratá-la como problema de saúde pública, como acontece na quase totalidade dos países desenvolvidos. Caso contrário, as mulheres continuarão a não procurar o serviço de saúde tempestivamente, e quando procurarem, continuarão negando informações que levarão à repetição do aborto, erros de diagnóstico e procedimentos inadequados, com graves sequelas e mortes.
Como já dizia o ex-presidente da FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia), Mahmoud Fathalla: “As mulheres não morrem porque sua doença não pode ser tratada. Elas estão morrendo porque as sociedades ainda não tomaram a decisão que suas vidas devem ser salvas”.


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