Entre boleros e dubs, Lia de Itamaracá moderniza ciranda e coco em novo disco com Daúde
A cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá e a cantora baiana Daúde lançam o disco "Pelos Olhos do Mar" nesta quinta-feira (27). O álbum conta com músicas inéditas e revistadas de autores como Emicida, Chico César, Russo Passapusso, Otto e Céu.
Publicado: 27/11/2025 às 06:00
Lia de Itamaracá e Daúde ensaiaram para a turnê de "Pelos Olhos do Mar" na Ilha de Itamaracá. (Marina Torres/DP Foto)
Aos 81 anos de idade, Lia de Itamaracá acaba de se juntar à baiana Daúde, de 64, para lançar o disco mais inovador da sua carreira até aqui. Intitulado “Pelos Olhos do Mar”, o álbum chega às plataformas de streaming pelo SeloSesc nesta quinta-feira (27), trazendo a dupla à frente de um repertório que mistura a cultura popular pernambucana com bolero, dub e outras culturas urbanas. As referências surgem entre composições inéditas e revisitadas de autores como Emicida, Russo Passapusso, Céu, Otto e Chico César.
Embora soe diferente, Lia enxerga tudo como mais uma ciranda, entre as muitas que faz há mais de 60 anos. “A gente quer se unir e chamar mais gente. É como na ciranda: dar-se as mãos e não se separa ninguém”, resumiu em entrevista ao Diario. Para a pernambucana, o laço que se estabeleceu entre ela e Daúde é quase de sangue: “Somos uma família. Foi o que senti no coração quando a encontrei”.
A conexão se estreitou especialmente há cerca de dez anos, quando as duas começaram a fazer participações em shows uma da outra. A partir de então, construiu-se um elo que, inicialmente, seria celebrado com uma participação da cirandeira em um disco de Daúde, que não chegou a ser lançado. Depois, a dupla sentiu a necessidade de fazer um projeto completo conjunto, que se concretiza agora em "Pelos Olhos do Mar".
“O que é mais legal para mim é estar perto disso naturalmente, por acreditar, respeitar e olhar pra ela e lembrar dos meus. Nesse sentido, a Lia me fortalece”, comenta a baiana. “Uma fortalece a outra”, completa Lia, que contou com a presença da amiga na Ilha de Itamaracá por cerca de 20 dias durante este mês, quando aconteceram os ensaios para os shows do trabalho.
Radicada no Rio de Janeiro, Daúde acredita que a temporada no município foi fundamental para o projeto completar um processo de restauração da memória. “Nesses tempos que os diálogos são só emojis, fico muito feliz de estar aqui compartilhando momentos, comendo junto com as pessoas, são coisas que foram se perdendo. Esse trabalho tem um pouco disso, ele festeja essas voltas”, avaliou.
Para a baiana, a obra de artistas como Lia abriram os caminhos para que ela também seguisse com seu trabalho. Por isso, ela acredita que o novo álbum é também uma forma de reverenciar as conquistas e as vitórias da cirandeira.
Disco
O resgate cultural também é evidenciado desde a abertura do álbum com a faixa “As Negras”, de Chico César. Nela, a dupla se anuncia como herdeira de uma ancestralidade africana, que perpassa todo o disco, cruzando diversas referências da cultura afro-brasileira em uma rica trama sonora tecida pela produção de Marcus Preto e Pupillo, ex-baterista da Nação Zumbi.
Até mesmo ritmos de origem negra de outros países da América não escapam da teia. É o caso do bolero, que ganha destaque em “Quem é”, de Maurílio Lopes e Silvinho, e na faixa-título “Pelos Olhos do Mar”. Essa última é uma das músicas inéditas do álbum, composta pelo pernambucano Otto. A inclusão do gênero caribenho foi um pedido da própria Lia, que já vinha demonstrando predileção pelo estilo desde o disco “Ciranda Sem Fim”, de 2019.
O dub, por sua vez, também surge adensando o “Pout-Pourri de Cocos”, que repagina os clássicos “Bar do Hermínio”, de Dona Celia do Coco, “Galo Cantou”, de Selma do Coco, e “Xô, Xô, meu Sábiá”, de domínio público. Baracho é outro mestre da cultura popular que passa por um filtro jamaicano na releitura da ciranda “Se meu amor não chegar nesse São João”.
A presença desse repertório tradicional evoca pertencimento não só para Lia, como também para Daúde, que revelou ter crescido ouvindo as tias cantando cirandas. “Estar perto da maior representante do estilo é novo, mas é muito natural para mim estar dentro disso, porque é música brasileira, negra e popular”, explica.
A baiana se consolidou artisticamente a partir de 1995, promovendo o encontro justamente entre as tradições musicais brasileiras e a música urbana contemporânea. Inclusive, muitos dos recursos explorados em sua obra, como loops e ambiências, ganham espaço em “Pelos Olhos do Mar”, como nas demais faixas inéditas, como “Santo Antônio da Boa Fortuna”, de Emicida, “Florestania”, de Russo Passapusso e Céu, e “Bordado”, de Karina Buhr.
Para Lia, a oportunidade de experimentar outras propostas musicais é “sensacional”. “A gente passa a ciranda para outro patamar. Eu aprendo com Daúde, ela aprende comigo e a união faz a força”, diz, animada com a perspectiva de conquistar novos espaços com o trabalho. “Meu sonho todo era cantar e tô cantando, então vamos levar pro mundo”, conclui.