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Entrevista

Debate estético na literatura é ultrapassado, diz Itamar Vieira Jr.

Autor de livros premiados como "Torto Arado" e "Salvar o Fogo", o baiano Itamar Vieira Jr. conversou com o Diario de Pernambuco; ele participa da Flup, no Recife, na próxima sexta (12)

Camila Estephania

Publicado: 05/09/2025 às 17:08

Itamar Vieira Jr. lançou o livro

Itamar Vieira Jr. lançou o livro "Torto Arado" em 2019, abrindo a "trilogia da terra". (Divulgação)

Um dos escritores brasileiros de maior sucesso da atualidade, o baiano Itamar Vieira Jr. vive uma agenda concorrida, mas não poderia deixar de vir à edição recifense da Flup - a Festa Literária das Periferias, que começa na próxima quarta-feira (10). Sua relação com Pernambuco é antiga e remonta o início da sua trajetória como escritor.

Ele recorda que escreveu a primeira versão de “Torto Arado” quando viveu em Jaboatão dos Guararapes, durante a adolescência, em 1996. Embora tenha perdido as páginas pouco depois, o autor seguiu semeando a semente plantada em terras pernambucanas nos anos seguintes. O resultado lhe rendeu seu primeiro Prêmio Jabuti, em 2020.

Desde então, o autor soma compromissos. Ele deu uma entrevista ao Diario de Pernambuco para falar de sua participação na Flup, semana que vem, durante viagem a Paraty, no Rio de Janeiro, onde participa dea imersão literária até 7 de setembro.

A programação da edição recifense da Flup conta com uma mesa, na sexta (12), em que o autor vai debater o papel da literatura e o incômodo que ela provoca quando fala sobre desigualdades sociais e racismo.

 

Recentemente, essa discussão foi aquecida pelos comentários da tradutora e professora aposentada da USP Aurora Bernardini, que disse à Folha de S. Paulo, na última semana, que Itamar não faz literatura. A afirmação da italiana se baseou no argumento de que o baiano prioriza o conteúdo, ao invés da forma estética.

Questionado, Itamar preferiu não comentar. Contudo, na mesma conversa, disse que a literatura está em transformação e o debate estético é “bem relativo e ultrapassado”. “A literatura é indissociável da forma estética. Todos que estão escrevendo neste momento têm alguma estética, mas quem define o cânone é uma elite de homens brancos, europeus, até os nossos dias”, defende.

Leia abaixo a entrevista na íntegra:

Em 2018, acompanhei um debate com o escritor pernambucano Philippe Wollney, que comentou que, em um país com oportunidades desiguais, priorizar a estética seria uma forma de dar voz a um grupo só (que teria acesso a determinado saber). É possível priorizar a estética sem ser excludente no Brasil?

A literatura é indissociável da forma estética. Todos que estão escrevendo neste momento têm alguma estética, mas quem define o cânone é uma elite de homens brancos, europeus, até os nossos dias. Então, num mundo tão diverso como o nosso, é muito normal que exista essa discordância do que é e do que não é estética, do que é e do que não é conteúdo. As nossas universidades ainda são espaços que replicam profundamente os paradigmas coloniais, é normal que se pense dessa maneira, né? Mas eu acho que a linguagem e a literatura estão vivas e essas mudanças têm ocorrido. Esse debate é bem relativo e ultrapassado.

Acredita que a literatura seria um tipo de arte mais elitista do que outras, como a música ou o cinema? Qual deve ser a principal finalidade da literatura atualmente?

O crítico Antônio Cândido tinha um pensamento muito vanguardista no que diz respeito à literatura. No ensaio "O Direito à Literatura", ele diz que a literatura não era apenas as obras escritas. As histórias orais transmitidas de geração em geração, o indígena que quando vai caçar, tudo isso era considerado formas de expressão de literatura. Pensando a partir dessa perspectiva, acho que o conceito de literatura é bastante amplo. E, quando ele fala do direito à literatura, não está defendendo o direito de uma elite, ele está defendendo justamente o direito de todo e qualquer ser humano à arte e à fruição, quem escreve ou não, de quem pode ler ou não... Por exemplo, as escolas de samba, o cancioneiro popular, todos eles guardam narrativas que são consideradas artes e atingem as pessoas.

No Nordeste brasileiro, e eu sou nordestino, a literatura de cordel tem um papel importantíssimo. Influenciou uma geração de escritores, de Ariano Suassuna a Jorge Amado, e era uma arte popular vendida nas feiras populares. As pessoas liam independente da sua escolaridade. As pessoas estavam ali, em volta dessa arte que até hoje resiste e a gente encontra nas feiras. Eu acho que a literatura é isso, a gente tem um espectro de obras muito grande. Tem aqueles que escrevem para um público grande. O próprio romance tem subgêneros, tem romances de entretenimento, literários… Ou seja, isso é bem relativo.

Você já morou no Recife. O cenário cultural pernambucano e as suas experiências por aqui tiveram influência na sua construção como escritor?

Tenho uma relação muito forte com Pernambuco. Eu morei, na verdade, em Jaboatão dos Guararapes, mas, como é muito próximo, estava sempre no Recife. Só pra você ter uma ideia, eu comecei a escrever a primeira versão do romance (“Torto Arado”) aí, com 16 anos. Pernambuco tem uma cultura pujante, a música, a literatura, as tradições, e tenho uma relação muito forte com esse ambiente. Sou baiano, morei a vida toda na Bahia, mas morei também no Maranhão e em Pernambuco, a minha relação com com esse espaço foi a mais produtiva, a mais fértil possível. Tenho muito carinho, adoro quando recebo o convite para voltar a Pernambuco.

Como foi o início da escrita aqui?

Eu comecei a escrever “Torto Arado” numa máquina de escrever. Escrevi 80 páginas. Três anos depois, nos mudamos para a Bahia e eu perdi essas páginas, mas continuei a alimentar a vontade de escrever esse romance. Tudo começou aí. Eu tive uma professora de Literatura, Terezinha Accioly, que me ensinou muito sobre a literatura modernista, o ciclo do Nordeste e da geração de 1930 a 1940. As aulas dela e a leitura desses romances me influenciaram muito para começar a escrever.

As narrativas das periferias vêm conquistando mais espaço na cultura de um modo geral. Na música, muitos pesquisadores atribuem a conquista desse espaço à consolidação da internet, que permitiu a difusão gratuita da produção periférica, sem o filtro das gravadoras. Ao que você atribui essa abertura na literatura?

Acho que há uma conjunção de fatores, além da popularização das redes. A gente tem tido uma mudança significativa no nosso perfil social e, pensando dessa forma, as políticas afirmativas foram estruturantes para essas mudanças. A lei de cotas faz quase 20 anos e mudou significativamente o perfil do corpo discente na universidade pública, por exemplo. Outras mudanças políticas importantes foram fundamentais para estruturar um novo panorama nas artes, não só na literatura, mas no cinema, na música, onde o Brasil vai aparecer com toda sua diversidade. Essa mudança veio, mas ainda tímida, porque eu acho que podemos muito mais.

Qual é a importância de um evento como a Flup nesse sentido?

A Flup é um evento que já tem uma tradição de alguns anos e privilegia as narrativas daqueles que foram historicamente invisibilizados. Eu tive a oportunidade de participar da Flup em diversos momentos, um deles foi durante a pandemia, quando dei uma oficina para escritoras negras e foi maravilhoso. Falamos da Carolina (Maria de Jesus), que foi uma das homenageadas naquele ano, e as autoras produziram um livro com contos de todas que participaram. Este ano, também participei da Flup fazendo parte da delegação brasileira que foi para Saint-Malo, na França, e foi incrível poder mostrar toda essa força da nova literatura brasileira nesses espaços, que são historicamente de poder. A Flup tem um trabalho maravilhoso e eu estou muito entusiasmado para participar dessa atividade em Pernambuco e da que haverá no Rio de Janeiro no fim do ano.

Em “Torto Arado” e “Salvar o Fogo”, o direito à terra é um tema central na trama, que se passa em ambientes mais rurais. O livro que encerra essa “trilogia da terra” será “Coração Sem Medo”, com lançamento previsto para outubro deste ano. Nessa última, contudo, a história que se passa em Salvador, um ambiente urbano. Para você, como o valor da terra é ressignificado nesse lugar?

É muito interessante como esse tema flui, porque eu comecei a escrever essas histórias sem ser guiado por um tema. Eu estava guiado pelas personagens, mas o tema da terra se impôs como uma questão fundamental da vida das personagens. Quando a gente fala de terra e território, estamos falando de um direito elementar de todo e qualquer ser vivo e, em particular, dos seres humanos. O mundo vive grandes disputas pelo direito ao território. Se você for observar as guerras e os conflitos no mundo todo têm essa ordem. Então, se é um direito elementar, por que é negado para muitos? É claro que o romance tem como objetivo que a gente frua da arte, da história, mas não impede também que a gente reflita sobre questões importantes da nossa humanidade.

Recentemente, o debate sobre “parditude” cresceu na internet. A pesquisadora Beatriz Bueno se propõe a desenvolver o conceito de “parditude” como uma categoria que reconheceria especificidades da vivência de pessoas mestiças. Muitos pesquisadores negros se opõem e dizem que a ideia promove uma separação no movimento negro. Enquanto homem negro que escreve sobre as vivencias de personagens que têm ancestralidade afro-indígena, como você vê essa proposta?

Olha, eu acho que temos uma produção intelectual muito extensa de nomes como Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Lélia González e Abdias Nascimento, que já foi exaustivamente pensada, refletida. Toda essa obra serviu de parâmetro para os dispositivos legais constitucionais que temos para promover a igualdade na sociedade. A Beatriz Bueno pode ter uma intenção, pode ter uma proposta que pode ser debatida dentro do escopo que já foi produzido, mas ainda não tem um lastro teórico consistente para a gente pensar nessa divisão. E eu prefiro ficar com os mais velhos, que vieram antes, que trouxeram um conhecimento que tem norteado a nossa luta por justiça social e justiça racial. A gente não pode desprezar uma produção de muitas décadas, que, aliás, começou ainda muito antes, né? A própria Suely, a Lélia, o Abdias e a Beatriz são tributários de conhecimentos que vieram de outros séculos. Acho que o que o que foi produzido nesse sentido nos atende e a gente pode sim aperfeiçoar. Não vejo razões para essa divisão.

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