Escolas de Pernambuco têm currículos antirracista, mas ainda enfrentam desafios estruturais
Gestores afirmam que o combate ao racismo precisa envolver toda a comunidade escolar
Publicado: 20/11/2025 às 09:45
Programa Infância na Creche permitiu a ampliação de vagas (Foto: Sandy James/DP Foto)
Por mais de duas décadas após a aprovação da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, redes de ensino ainda tentam transformar obrigação legal em prática cotidiana.
Em Pernambuco, tanto a rede estadual quanto a municipal do Recife afirmam ter avançado em políticas estruturadas de educação antirracista, mas reconhecem que os desafios persistem, desde resistências familiares até limitações de equipe e alcance.
Na rede estadual, o ponto de partida é o Currículo de Pernambuco, que já prevê a educação para as relações étnico-raciais como tema transversal. “O currículo garante que a educação antirracista passe por todas as disciplinas”, explica o gerente de Direitos Humanos da Secretaria de Educação do Estado, Cledson Lima.
Hoje, o estado conta com o Protocolo de Educação Antirracista, elaborado pela Secretaria de Educação (SE-PE) em parceria com diversas gerências e unidades técnicas. Ele funciona como um instrumento pedagógico e preventivo para enfrentar violências invisibilizadas ou naturalizadas.
Logo na introdução, o Protocolo reconhece que a escola, mesmo sendo espaço de diversidade e convivência entre grupos distintos, não conseguiu superar o racismo e outras formas de violências que contribuem para índices elevados de evasão e repetência entre estudantes negros, indígenas, quilombolas e ciganos (romani).
Diante disso, o Protocolo estabelece uma série de obrigações e orientações para as escolas. Entre as principais diretrizes, estão a Comissão de Mediação de Conflitos, canais de denúncia, atendimento imediato, registro obrigatório, responsabilização sem estigmatização e articulação com a rede de proteção.
Desde 2023, o estado intensificou ações de formação continuada. Uma Caravana de Educação em Direitos Humanos percorreu todas as regiões, de Petrolina a Fernando de Noronha, reforçando com equipes gestoras a importância dos estudos sobre a cultura afro e indígena nas escolas.
No mesmo ano, foi lançado o Curso de Letramento Racial Crítico, inspirado em Maria Aparecida de Jesus. “Se as nossas crianças aprendem a ser racistas, nós podemos ensinar a serem antirracista”, afirma Cledson Lima.
Segundo o gestor, o formato precisava ser escalonado. “São mais de 1.100 escolas divididas em 16 GREs. Formamos os professores formadores, que repassaram o conteúdo às escolas”, diz.
O ano também marcou a produção de cartilhas por disciplina, feitas em parceria com pesquisadores da USP, UFPE e UPE. “Muitos professores diziam: ‘Não fomos preparados para trabalhar currículo antirracista.’ Então contratamos pesquisadores de cada área.”
O resultado: materiais para matemática, língua portuguesa, artes, educação física e demais componentes. “É um avanço enorme, porque mostra que a luta antirracista não é só das humanidades”, destaca Cledson.
O estado monitora as ações principalmente por formulários enviados às GREs, que geram um ranking interno. Sobre a participação das famílias, ela é considerada crucial, mas difícil. “Os pais nem sempre conseguem comparecer. Muitos têm empregos sem flexibilidade. Mesmo assim, insistimos: a escola ainda é um dos espaços mais seguros contra desinformação e preconceito”, relata Cledson.
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Recife completa 19 anos de política estruturada e intensifica formações
Na capital, a política antirracista também estáem andamento há anos. O gestor de formação continuada Henrique Nelson destaca que toda a rede participa de formações mensais. “Realizamos formação para pelo menos 5 mil profissionais: professores, coordenadores, gestores, auxiliares, pessoal do Acompanhamento Especial… Todo mundo passa por formação.”
As pautas variam conforme a etapa, idade e área. Na Educação Infantil, chegam a quatro trilhas formativas diferentes. Nos anos iniciais, alfabetização e letramento matemático; nos finais, componentes como história, geografia e matemática.
O currículo municipal, criado em 2015 e revisado após a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tem entre seus pilares a educação para as relações étnico-raciais (ERE). Para sustentar essa política, a rede conta desde 2006 com o GTER (Grupo de Trabalho em Educação para Relações Étnico-Raciais), hoje integrado por três professoras especialistas.
“Elas dão formação para todas as etapas, da Educação Infantil à EJA. A cada mês entram em novas salas de formação”, conta o gestor, que dirige a Escola de Formação desde 2022. O grupo também realiza visitas técnicas às escolas, rodas de conversa com estudantes, intervenções pedagógicas e análise de materiais didáticos.
Em 2023, o Recife recebeu o Selo Petronilha, do MEC, pela atuação dentro da Política Nacional de Educação para Relações Étnico-Raciais (PERNIC).
Apesar dos avanços, o gestor municipal aponta obstáculos. “Não há como promover aprendizagem enquanto houver racismo na escola, e ele existe. Temos visto manifestações de racismo religioso e famílias que não aceitam certos debates”, expõe Henrique.
Mesmo assim, os efeitos positivos já são perceptíveis e o gestor afirma que já há reconhecimento de autodeclaração e afirmação física. Ele destaca ainda que casos de racismo têm resposta dupla, com intervenção pedagógica do GTER e atuação mais ampla do Núcleo de Enfrentamento à Violência Escolar (NEVE).
Na visão do gestor do Recife, “não é só educar um aluno branco para não cometer racismo, mas valorizar o aluno negro e pardo para que consiga ser quem é. É um trabalho de afirmação de identidade. E isso já está transformando nossas escolas.”