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O MUNDO CANTANDO PARA PERNAMBUCO

Há 68 anos, Recife recebia a artista 'mais cara a passar pelo Nordeste'

Publicado em: 15/08/2020 08:00 | Atualizado em: 03/01/2021 21:53

Josephine Baker fez shows no Recife em 16 e 17 de agosto de 1952, quando tinha 46 anos (Foto: Reprodução da Internet)
Josephine Baker fez shows no Recife em 16 e 17 de agosto de 1952, quando tinha 46 anos (Foto: Reprodução da Internet)

A pedido do engenheiro francês Louis Léger Vauthier, a construção do Teatro de Santa Isabel não contou com o uso da mão de obra de pessoas escravizadas, uma iniciativa considerada progressista naquele Brasil escravocrata de 1841. Ainda no século 19, o espaço recebeu as declamações libertárias de Castro Alves e se transformou em palanque da Campanha Abolicionista. E foi nesse mesmo palco, em agosto de 1952, que uma mulher negra e bissexual radicada francesa se tornou a primeira grande estrela internacional a realizar um show em Pernambuco, sendo divulgada como a "artista mais cara contratada para atuar no Nordeste até então". Era Josephine Baker, dançarina, cantora, atriz, espiã, ativista e uma das personalidades midiáticas mais controversas da primeira metade do século 20. Uma popstar de seu tempo.

Nascida em 1906 no Missouri, nos Estados Unidos, Josephine Baker começou a trabalhar como doméstica aos oito anos para ajudar a família. Aos treze, foi forçada a se casar com um homem mais velho, mas se divorciou aos 15 e foi trabalhar para shows de vaudeville (entretenimento popular dos EUA até a década de 1930), quando se mudou para Nova York. Ao ver várias portas sendo fechadas pelo racismo, ela decidiu residir na França, onde conquistou fama em cabarés como o famoso Folies Bergère. O rascismo também exisita no país europeu, mas foi lá que Baker conseguiu burlar o sistema com seu talento multifacetado.

Com performances em que aparecia seminua e usando alegorias irreverentes, Josephine soube explorar sagazmente um certo imaginário europeu que ligava o corpo negro ao exótico, ao mesmo tempo em que subvertia sarcasticamente essa ideia ao expor a América urbana e moderna da década de 1920. Ela se tornou ícone de intelectuais e artistas modernistas, sendo uma das vedetes mais bem pagas de sua época. A artista veio ao Brasil pela primeira vez para shows no Rio de Janeiro, em 1929, quando sua imagem pública causou impacto na elite e na imprensa carioca.

Josephine Baker na década de 1920, em Paris (Foto: Reprodução da Internet)
Josephine Baker na década de 1920, em Paris (Foto: Reprodução da Internet)

"Em uma sociedade altamente hierarquizada, à mulher negra não era permitido ultrapassar as fronteiras do trabalho doméstico", explica a pesquisadora Karla Carloni, da UFF. "Porém, Baker, desfilou, dona do seu próprio corpo e imagem, em vestimentas luxuosas, despertando, ao mesmo tempo, desejo e rejeição em suas apresentações provocantes. A Vênus Negra era uma diva moderna que ameaçava as hierarquias e os costumes ao se consagrar em Paris, capital cultural e referência da elite brasileira."

Com a chegada da Segunda Guerra, Josephine já era muito famosa para atuar como soldada, mas conseguiu colaborar como espiã. Durante concertos para oficiais dos países do Eixo, ela escrevia informações coletadas e as repassava para a agentes dos Aliados. Foi na Segunda Guerra, inclusive, que Pernambuco recebeu um grande fluxo de artistas estadunidenses, como já mostrou a reportagem Como a Segunda Guerra transformou a vida noturna do Recife, publicada no sábado passado (8). As estrelas mais famosas, no entanto, eram enviadas ao Rio de Janeiro, então capital federal, ou Natal, que abrigava uma base americana mais extensa pela maior proximidade com a África. Sendo assim, a vinda de uma figura popular como Josephine Baker foi um evento inédito em Pernambuco.

Uma novidade sensacional
Notícia sobre show de Baker no Recife, publicada em 3 de agosto de 1952 (Foto: Acervo DP)
Notícia sobre show de Baker no Recife, publicada em 3 de agosto de 1952 (Foto: Acervo DP)


No Diario de Pernambuco, a primeira menção à nova visita de Baker ao país foi feita em 11 de junho de 1952, mas sem mencionar a passagem pelo Nordeste. "Josephine Baker vem ao Brasil para prosseguir na sua luta contra o preconceito racial. Vimos pela primeira vez a negra em Paris, em 1927, no Night Club que tinha o seu nome. Talvez tivesse uns 20 anos. Era uma mulher mulher fina e esbelta, reluzente como ébano. Suas ondulações lembravam as dançarinas da Síria. Ao som estridente da música, deslizava por entre as mesas do clube e ia tirando os mais velhos, para com ela rodopiarem pelo pequeno salão."

O show de Baker no estado foi anunciado em julho de 1952. "A notícia ecoou por toda a cidade, como uma novidade sensacional, provocando os mais vivos comentários, despertando notável interesse, causando verdadeira surpresa. E desde então, a notícia tomou conta da cidade, ocupando todas as conversas e monopolizando as atenções", diz um texto do Diario em 3 de agosto, imprimindo o tom de grandiosidade do evento. "A presença de Josephine Baker no Recife será sem dúvida uma atração nunca vista entre nós. Todos aguardam com ansiedade a visita da estrela internacional, cantora e bailarina negra da França".

Na época, Josephine havia sido contratada para uma agenda de sete shows no Night and Day, um importante clube da noite carioca. O grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand, foi quem aproveitou a ocasião para trazê-la a Pernambuco através de uma parceria da Rádio Tamandaré com uma empresa de artigos para homens chamada A Especialista, que então comemorava 14 anos de funcionamento na Rua 1 de Março, em Santo Antônio. "As rádios traziam alguém grande quando tinham patrocínio por trás ou se existisse alguma entusiasta do artista na empresa. Nesse caso, acredito que existisse alguma fã dela", diz Renato Phaelante, antigo coordenador da Fonoteca, da Diretoria de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco.

Capa com anúncio sobre show em 28 de julho de 1952 (Foto: Acervo DP)
Capa com anúncio sobre show em 28 de julho de 1952 (Foto: Acervo DP)

Como o Diario de Pernambuco também fazia parte dos Diários Associados, houve uma ampla divulgação no jornal. Em 29 de julho, a capa do periódico mais antigo em circulação na América Latina foi totalmente dedicada a um anúncio do show. "A artista mais cara até hoje contratada para atuar no Nordeste", dizia a arte - o preço do cachê não foi revelado. O acordo contemplava dois shows para o público no Teatro de Santa Isabel, em 16 e 17 de agosto (sábado e domingo), sempre às 21h35. Os ingressos podiam ser adquiridos com um rapaz chamado Lisboa no estabelecimento Casa Faísca, da Rua da Palma.

Os shows no Santa Isabel contaram com transmissão ao vivo na Rádio Tamandaré, com narração de Luiz Jatobá. Após o primeiro show, Josephine seguiu para o Clube Náutico do Capibaribe, onde realizou um show privativo para a aristocracia recifense, que ficou enfeitiçada pelos encantos da Pérola Negra. Ela trouxe na bagagem novos vestidos exclusivos de Christian Dior, Pierre Balmain e Jean Dessés, com os quais se apresentou. A cobertura da primeira noite ocupou todo o espaço superior da página do Diario, algo incomum para a diagramação da época. Seguem trechos da cobertura:

"Marcou um sucesso sem precedentes, jamais igualado na história artística do Recife, a sensacional estreia de Josephine Baker ontem a noite ao microfone da Rádio Tamandaré. A famosa vedete negra, que durante vários anos vem empolgando as mais exigentes plateias da França, EUA, Inglaterra e diversos outros países, com a sua fabulosa personalidade e o encantamento de sua arte, de certo permanecerá inesquecível para o público pernambucano que ontem superlotou todas as dependências do Teatro Santa Isabel, onde foi realizada a deslumbrante apresentação. A medida que executada cada número, Josephine Baker era aplaudida delirantemente, como jamais o foi qualquer artista apresentado no velho teatro, nesses últimos anos."

Capa com cobertura do show, em 18 de agosto de 1952 (Foto: Acervo DP)
Capa com cobertura do show, em 18 de agosto de 1952 (Foto: Acervo DP)

Após arrebatar a plateia pernambucana, Josephine Baker seguiu para João Pessoa (PB), onde fez um espetáculo pago pelo Esporte Clube Cabo Branco em parceria com a Rádio Tabajara. O show contou com abertura do pernambucano Nelson Ferreira e sua orquestra.  Em novembro do mesmo ano, ainda em excursão pela América Latina, ela causou uma polêmica global ao criticar duramente a segregação racial nos Estados Unidos em uma coletiva para jornais de Buenos Aires, na Argentina. Naquele contexto da Guerra Fria, essa posição firme fez alguns países do continente restringirem os shows da artista, como no caso da Colômbia.

Baker nunca parou de denunciar o racismo. Quando as pautas antirracistas e pelos direitos civis ganharam fôlego nos anos 1960, ela praticou o ativismo ao lado de Martin Luther King e foi associada da NAACP - Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor. Josephine Baker voltou ao Brasil em 1963 e 1971. Ela faleceu em 1975, aos 68 anos, vítima de hemorragia cerebral, rodeada de jornais que celebravam uma nova turnê de 50 anos de carreira. Dona de uma trajetória impressionante, a Vênus Negra marcou presença no palco mais emblemático de Pernambuco.

Essa é o segundo texto da série O mundo cantando para Pernambuco, que visa resgatar os grandes shows internacionais em Pernambuco no século passado. 

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