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Cinema CRÍTICA: Para Minha Amada Morta: quando a contingência sufoca Filme nacional está em cartaz no Cinema São Luiz, na Boa Vista

Por: Érico Andrade - Especial para o Diario

Publicado em: 13/04/2016 21:00 Atualizado em: 13/04/2016 17:56


Cena do longa nacional Para Minha Amada Morta; Foto: Divulgação
Cena do longa nacional Para Minha Amada Morta; Foto: Divulgação

Lidar com o luto é algo para o qual nunca estamos plenamente preparados. Os nossos sentimentos ficam invariavelmente confusos. Para a minha amada morta leva a confusão dos sentimentos do luto – duplo luto, luto pela morte da mulher e, depois, pela descoberta da traição – à sua radicalidade na medida em que constrói o drama de uma personagem introspectiva, lacônica, obsessiva e, sobretudo, demasiadamente humana, para lembrar o filósofo, em sintonia com um trabalho de roteiro preciso. A precisão está não apenas no encadeamento da estória, mas também no tempo de cada quadro, de cada plano e, especialmente, de cada gesto.

Confira o roteiro de cinema do Divirta-se

Nessa perspectiva, para contar o primeiro luto o diretor Aly Muritiba enquadra Fernando (a personagem principal) sobre o vestido da mulher e embaixo do filho que o abraça sobre as costas na esperança repetida de animar o pai. Roupas e sapatos são guardados com esmero por Fernando que vaga pela casa seguindo sempre os rastros da amada. Ele nunca é enquadrado no centro da tela. É como se houvesse a presença sensível da sua amada em cada parte de sua vida e em cada ambiente em que ele está. A confusão do luto é acentuada quando os arquivos pessoais de sua esposa deixam de mostrar as clássicas cenas de casamento ou mesmo imagens dela quando criança e denunciam uma traição constante; mais do que isso, cortante.

A frase “você foi a melhor coisa que me aconteceu” por meio da qual a esposa falecida de Fernando se refere ao amante o faz imergir numa decepção aguda, dilacerante como mostra o close mais radical do filme na face da personagem. Completamente transtornado Fernando adormece e deixa a sua arma exposta, ferindo o costume que guardava de escondê-la do filho. Logo pela manhã seu filho a manuseia. Tensão. A partir daí o filme se transforma na sufocante iminência de uma tragédia, motivado, claro, pelo machismo venal que se abate sobre a personagem.

Fernando toma a decisão de viver seu segundo luto longe do seu filho (o que é recorrente, infelizmente, entre os homens que parecem enxergar no filho a esposa traidora) e, surpreendentemente, próximo daquele que foi o amante incidental de sua esposa, Salvador. Ele passa a habitar na casa do quintal da família de Salvador. A falta de previsibilidade de suas ações na casa de Salvador é acompanhada pelo espectador do filme pela ótica embaçada dos seus gestos. Gestos que são, aliás, invariavelmente ambíguos e demonstram um drama que se enreda no mesmo compasso confuso da personagem.

Assim, os objetos do cotidiano, martelo e pá, por exemplo, são enquadrados em várias cenas como se fossem armas em potencial porque são acompanhadas por diálogos que destilam ressentimento por parte de Fernando. Notadamente, como o filme estabelece um pacto entre Fernando e o público (que são os únicos que sabem da obsessão dele), cada cena parece ser o momento do desfecho da vingança iminente. Quando Fernando leva Salvador para um lugar, conhecido por ser um terreno de desova e que supostamente seria o lugar do seu batizado, a tensão é ampliada e começa a respingar mais fortemente em Salvador cuja desconfiança em relação a Fernando vai crescendo paulatinamente para culminar com o pedido que ele deixe a casa do quintal. Salvador percebeu que a forma esquisita pela qual Fernando se comportava estava contaminando e envenenando a sua família.



Se no desfecho Salvador realiza sozinho todo o perigo que correu, os espectadores têm a demonstração de que o filme nos sufocou não pelo que poderia ter acontecido, mas por toda contingência do que aconteceu.

(Érico Andrade é filósofo, professor da Universidade Federal de Pernambuco e colaborador do Diario)

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