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Uma mulher que queria a vida como ela deve ser

Em tempos de solidariedade tão escassa, amigos lamentam morte da advogada Andrea Gorenstein

Publicado em: 24/01/2018 07:32

Foto:Henriqueta de Belli /Arquivo Pessoal
Decido começar a escrever e de repente, pela janela, entra um vento que remexe as folhas do bloco onde se encontram as anotações. Eu rio do pensamento mágico que se segue: “Deve ser Andrea, que não cansa de brincar”. Talvez o nome para a senhora, o senhor, não signifique nada, em termos pessoais. Nem se eu acrescentar o sobrenome – Gorenstein. Mas juntos, os dois identificam uma pessoa difícil de ser esquecida por amigos próximos e por mulheres que em algum momento de suas vidas foram vítimas de uma praga chamada machismo. A moça partiu neste último domingo, aos 42 anos, e deixou, atrás da notícia, legião de incrédulos. Dos primeiros a se manifestar publicamente pelas redes sociais, o cineasta Kleber Mendonça Filho lamentou a ida da ex-aluna do curso de inglês, que na fase adulta tornou-se amiga, incentivadora, com quem dividia o amor pelo cinema. A atriz Sônia Braga, também, fez coro a tantas outras vozes que entristeceram.

Mas quem era a moça? Advogada de formação, servidora pública, que emprestava os ouvidos a quem necessitasse, sendo mais do que conselheira, pessoa que ia em busca de providências. Não precisava ter constituído laços fortes, a causa bastava, e então ela seguia à frente alargando o caminho, sem cobrar nada por isso, ainda mais quando as agredidas eram mulheres com pouco ou nenhum recurso para buscar seus direitos. Foi sobretudo por elas que criou, nas redes sociais, a comunidade Tejucupapo, onde oferecia orientações, encaminhamentos para a solução e o ombro, claro, por que gente que tem uma escuta privilegiada a primeira coisa em que se transforma é numa espécie de mãe ou irmã. Nem queira imaginar o número de depoimentos dados pelas integrantes do grupo, lamentando a inesperada notícia. “Conheci Andrea nas ruas, militando por causas justas, e ela sempre tinha um esclarecimento, uma palavra de apoio, de incentivo. Era inteligente, mordaz, engraçada e inspiradora”, diz uma delas. “Meu namorado me humilhou publicamente, e ela, que estava junto, me tirou dali, me levou até em casa, elevou minha auto-estima durante todo o caminho”, pontuou outra. Uma terceira lembrou o fato de a cerimônia especial de segunda-feira, no Centro de Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), ter sido dedicada a ela, que descendia de judeus.

Nada que os amigos não reforcem, com muita emoção. A promotora do MPPE e amiga de infância Helena Martins, 44, ressalta a conhecida disponibilidade para o outro: “Ela encontrava gente na rua, ouvia os problemas com atenção, não ficava olhando relógio nem inventando desculpa para encerrar a conversa. Era generosa, solidária, muito inteligente, culta e interessada nos problemas da cidade – tinha uma visão muito crítica sobre eles –, envolvia-se em todas as causas de repercussão social e sabia de projetos que poucos conheciam. Lá estava, por exemplo, em atividades ligadas à educação infantil no Coque. O ativismo político era a vida dela, o que a alimentava”, afirma, a princípio muito firme, depois, emocionada.

A militância que Dea – como a chamavam os mais íntimos – abraçava se estendia às causas defendidas pela ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero. A diretora, Alessandra Nilo, lembra da presença constante da colaboradora em eventos da casa. “De tanto dizer sim aos nossos pleitos, ela acabou fazendo parte do rol dos grandes amigos, tinha um coração enorme, revelava-se a alegria em pessoa”. Esta alegria era tão genuína que acabou rainha do Coras de aço Inox (foto), bloco do qual Alessandra é uma das fundadoras. Amava o carnaval, mesmo nos tempos em que o câncer a fez ficar sem uma mama. Mesmo quando a depressão, que a acompanhou até o fim, tentava ganhar o jogo. Conseguiu, mas a vida transformada em luta e alegria é o que fica, como para corroborar famosa máxima do dramaturgo alemão Bertolt Brecht: “Há seres humanos que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”. Andrea Gorenstein, naturalmente, fazia parte desses últimos.
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