Opinião José Paulo Cavalcanti Filho: Intervenção militar já José Paulo Cavalcanti Filho é jurista e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 14/07/2017 07:24 Atualizado em:

Domingo passado, bem cedinho, dois carros de som atrapalharam o sono das vizinhanças do Primeiro Jardim. Com gravações de antigas canções da caserna. Sobretudo o Hino da Independência (Já podeis, da Pátria filhos). Bem na frente, a faixa “Intervenção Militar Já”. Outras, “Pátria e Família”, “SOS Forças Armadas”, “Não à Lei de Imigração”. E “Quem Concorda Buzina”. Quase ninguém buzinou, graças ao bom Deus. Protegendo a trupe de quase 50 cidadãos, alguns carros da Polícia Militar. Não foram necessários, ainda bem. Porque ninguém foi lá protestar. Por não valer a pena, talvez.

Parte desse grupo, sobretudo aqueles mais jovens, não tem ciência do que aconteceu verdadeiramente nos 20 anos de chumbo inaugurados em 1964. Corrupção, por exemplo, naquele tempo foi farta. O que levou o governo, em 1968, a editar o Decreto-Lei 359. Criando uma CGI para promover o confisco dos bens adquiridos de maneira ilícita. Por militares e agregados. Não foi suficiente. A farra continuou. Tanto que, em 1970, o major Waldyr Coelho, Coordenador da Oban (braço clandestino da repressão), propôs, ao Comando do II Exército, uma Oban específica contra essa corrupção (documento ACE 16.645-70, AN). A diferença para hoje é que não se sabia dos submundos, então. Por conta da censura.

Mortos e desaparecidos foram 434. Todos minunciosamente descritos, vidas e mortes, no Relatório da Comissão Nacional da Verdade – da qual fiz parte. De Abelardo Rausch de Alcântara até Zuleika Angel Jones. Houve tortura, também. Convertida em política de Estado. Nossas polícias, acostumadas a ser violentas apenas com traficantes e ladrões de carro, tiveram que recorrer a especialistas estrangeiros. Da França, vieram veteranos de guerra da Argélia. Da Inglaterra, das lutas contra o IRA. De lá, veio a novidade das torturas psicológicas. Com as “Five Techniques”. Alternando: 1. Manter a pessoa de pé, por muitas horas, em frente a uma parede; 2. Encapuzar; 3. Sujeitar a grandes barulhos; 4. Impedir o sono; 5. Oferecer pouca comida e água.

Dos Estados Unidos, também. Militares brasileiros foram treinados no Latin American Training Center: Ground Division, que os States mantinham no Panamá. Quem quiser ver seus nomes basta ir ao Arquivo CNV 00092.003322/2014-32. O coronel Paulo Malhães, em depoimento que nos deu, justificou. Sem denotar constrangimentos. Ou arrependimentos. “A tortura é um meio. O senhor tem que me apertar para eu contar. Então, a tortura é válida”.

Há provas de que pelo menos 1.843 pessoas (o número real é bem maior) foram submetidas a sevícias. Parte delas não sobreviveu. Entre as modalidades de torturas físicas estavam Afogamento – derramar água com querosene, amoníaco ou outro líquido no nariz da vítima, já pendurada de cabeça para baixo. Animais – lançados sobre o torturado ou introduzidos em alguma parte do seu corpo. Choque Elétrico – numa das máquinas usadas constava inscrição Donated by the people of United States. Pau de Arara – a vítima ficava suspensa por um travessão, com braços e pés atados, sofrendo afogamento, choques elétricos e sevícias sexuais. Produtos Químicos – para fazer o torturado confessar, ao produzir alterações na consciência. Telefone – mãos em concha nos dois ouvidos, ao mesmo tempo, até a perda dos sentidos, em muitos casos com rompimento dos tímpanos e surdez permanente. 

Ainda Cadeira do Dragão. Churrasquinho. Coroa de Cristo. Corredor Polonês. Crucificação. Enforcamento. Éter. Geladeira. Palmatória. Poço de Petróleo. Soro da Verdade. Sufocamento. E outros. Essas técnicas estão descritas com detalhes nas páginas 366/375 de nosso Relatório.  É bom que os jovens de hoje saibam, antes de pedir a volta do antigo regime. Porque esse passado foi duro demais, sujo demais, vergonhoso demais e indigno demais para ser esquecido tão cedo.


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