Diario Editorial: 'Os lírios não nascem da lei'

Publicado em: 14/07/2017 07:22 Atualizado em:

Quando uma criança dispõe de quase nada em sua família e no bairro onde vive, a rua e suas infinitas possibilidades podem preencher o todo ausente. Na rua há espaços para brincar, oferta de dinheiro e contato com outras fontes de afetividade. Imaturos pela própria natureza da infância, meninos e meninas nem sempre percebem os riscos de serem ainda mais alvos de uma violência iniciada lá atrás. Num tempo em que faltou estrutura familiar, sobraram pobreza e ausência do poder público na garantia de seus direitos mais básicos.

A invisibilidade das crianças em situação de rua soa ainda mais gritante quando a reflexão acontece na mesma semana de aniversário dos 27 anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei 8069, em 13 de julho de 1990. O conjunto de leis é considerado um marco histórico e moderno. Na realidade, quase três décadas depois, nunca foi posto em prática por completo.

No país onde o povo de rua não faz parte das estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), crianças que estão nessa situação não têm como ser enquadradas com eficácia em políticas públicas. Não são nem rostos, nem números. Algo que vai de encontro ao artigo n° 7 do ECA. “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.”
Matéria publicada na superedição do Diario do último final de semana contou as histórias de pessoas em situação de rua e o enfrentamento do frio no mês de julho. Entre as pessoas entrevistadas estava Luciana, 29 anos, mãe de gêmeas com 6 anos e de um menino com 11 anos. Enquanto Luciana dormia em um pedaço minúsculo de calçada com uma das gêmeas, o menino circulava na Praça Dezessete, no Centro do Recife, com a outra irmã. O pai das crianças está preso e Luciana foi obrigada a sair da comunidade onde mora por causa de ameaças.

Entender os motivos que levam meninos e meninas para as ruas e atuar em cada contexto é tarefa obrigatória dos governos, dos conselhos tutelares, da Justiça, da Polícia e da sociedade como um todo. Nunca, entretanto, aplicando medidas superficiais e higienistas de afastamento dessas pessoas dos espaços públicos que também são delas. Em São Paulo, segundo análise do Conselho Regional de Serviço Social, a ação da prefeitura na Cracolância, em maio, não incluiu, por exemplo, intervenções articuladas para proteger a população infantil que vivia no lugar, calculada em cerca de 80 crianças.

Como bem lembrou o coordenador  do Laboratório de História das Infâncias do Nordeste, Humberto Miranda, já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade: “as leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.”


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