Opinião Marly Mota: Villa Lobos no mundo de faz de conta Marly Mota é escritora e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 14/06/2017 08:57 Atualizado em:

Último dia do esperado mês de maio, na larga calçada da Igreja Matriz de Santana, em Bom Jardim, o trânsito oratório de pessoas não intimidava os comentários: Qual teria sido a noite de maio mais bonita. Famílias e autoridades participavam como noiteiros. Cada qual organizando com brilho os festejos; com foguetes explodindo no ar, flores, velas, balões e bandas de músicas. Terminada a novena os moradores mais distantes voltavam às suas casas, enquanto os que moravam na praça e arredores colocavam suas cadeiras nas calçadas, acompanhando a meninada, no mundo de faz de conta, dialogando e cantando: Eu sou pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marre, Eu sou rica, rica, rica, de marré, deci.

Na rua, à noite era só alegria: Ciranda, Cirandinha, Teresinha de Jesus, A Canoa Virou, Atirei o Pau no Gato, Fui ao Itororó, Na Ponte da Vinhaça, Se Essa Rua Fosse Minha.

O maestro e compositor Heitor Villa Lobos, entre tantas cantigas do nosso folclore brasileiro, fez desses temas uma suíte com 16 peças. Nesse trabalho incluiu: O Cravo Brigou com a Rosa. De Manuel Bandeira, em Evocação do Recife: A gente brincava no meio da rua. / Os meninos gritavam; / coelho sai! / Não sai! A distância as vozes macias das meninas politonavam / Roseira dá-me uma rosa / craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa / Terá morrido em botão). Nas idas com Mauro Mota às sessões da ABL e ao Conselho Federal de Cultura, encontrava sempre com Arminda (Mindinha) viúva de Heitor Villa Lobos, uma bela figura. Sentávamos em cadeiras vizinhas, ficamos amigas. Contou-me que em Heitor não lhe faltava o espírito para as aventuras quando, retornando da Europa, foi um dos poucos passageiros do Graf Zepelim. Arminda foi aluna e mulher de Villa Lobos até a morte dele em 1985. Sempre divulgadora da obra monumental do marido. Deu-me de presente o disco O Trenzinho Caipira, que faz parte das Bachianas Brasileiras nº 2. 

 Ainda no reino de faz de conta, Adélia Prado escreveu o seu Verossímil: Antigamente, em maio, eu virava anjo. A mãe me punha o vestido, as asas, me encalcava a coroa na cabeça e encomendava: Canta alto, espevita as palavras bem. Eu levantava voo rua acima. Também fui anjo, com cabelos em caracóis iguais aos dos querubins barrocos. Túnica de cetim, asas de arame cobertas de papel de seda imitando penas. Com as meninas da mesma idade ocupamos o nicho principal do altar-mor, entre nuvens de pano e velas de longos pavios a chamuscar. Lá nas alturas, sem nenhuma compostura angelical, inquietas no pequeno espaço, as nossas asas de papel pegaram fogo. O padre Júlio suspendeu a reza. Houve um rebuliço dentro da igreja, todo mundo querendo ajudar. Fomos retiradas às pressas por nossas famílias. Minha mãe jurou: Anjo, nunca mais! Nem de faz de conta.


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