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Os 105 anos da Hecatombe de Garanhuns

Ítalo Rocha Leitão
Jornalista

Publicado em: 25/01/2022 03:00 Atualizado em: 25/01/2022 05:59

“Se eu ganhar essa eleição, vou mandar lhe dar uma surra de cipó de boi!”.

E o capitão Sales respondeu ao coronel Júlio Brasileiro na bucha:

“E eu mato você!”.

Surra dada, coronel morto. Assim começava uma briga paroquial que teve como desfecho a maior tragédia política que já se abateu sobre Pernambuco e que virou notícia internacional: A Hecatombe de Garanhuns. O mês era janeiro e o ano 1917. Dois livros foram publicados sobre o assunto,

A Cobertura Jornalística da Hecatombe de Garanhuns, de Cláudio Gonçalves, e Anatomia de uma tragédia, de Mário Márcio de A. Santos. Os dois escritores são da terra onde aconteceu a tragédia.

Garanhuns já se apresentava naquela segunda década do século 20 como um dos municípios mais prósperos de Pernambuco. A agropecuária, as plantações de café e o comércio se destacavam. A família do coronel Júlio Brasileiro era não só a mais rica, como também a que mais acumulava poder político. E tinha uma característica bem peculiar: a truculência! Ninguém ousava desacatá-los. Deputado estadual e latifundiário de terras férteis, o coronel tinha sido também eleito prefeito de Garanhuns pela segunda vez em poucos anos, derrotando o candidato de uma oposição formada por ex-prefeitos, coronéis, médicos e ricos comerciantes da cidade.

Nesse rol, estava o capitão Francisco Sales Vila Nova, da Guarda Nacional, assim também como o coronel Júlio Brasileiro.

O capitão tinha uma atuação social no município e era tido como “oposição barulhenta” no combate ao poderio político do coronel Júlio Brasileiro. E foi exatamente ele quem denunciou a situação irregular do recém-eleito prefeito de Garanhuns. A alegação tinha fundamento jurídico porque, naquela época, como deputado estadual, o coronel não poderia ter disputado as eleições municipais. Sendo assim, o pleito foi anulado. E um novo decreto do governador Manoel Borba permitiu a candidatura do deputado Júlio Brasileiro em uma nova eleição marcada para o início de janeiro. Poucos dias antes, houve o fatídico encontro entre o coronel e seu desafeto principal, o capitão Sales. Em protesto contra o decreto, a oposição não participou da eleição.

Eleito prefeito de novo, o coronel pegou o trem pro Recife para compromissos políticos. Hospedou-se no Hotel Universo, na Rua Duque de Caxias, no centro da capital.

Em Garanhuns, assim que o dia escureceu, o capitão Sales foi atacado, no centro da cidade, por homens a cavalo e mascarados. Cada um com um rifle a tiracolo e um cipó de boi na mão. Pela voz e pela compleição física de um dos algozes, entre uma chibatada e outra, o capitão reconheceu o irmão do coronel Júlio Brasileiro. Dia seguinte, ainda sentindo as dores nas costas, lugar mais atacado pelas cipoadas, o capitão Sales se dirigiu à estação e pegou o trem pro Recife. Era o domingo, 14 de janeiro, a capital pernambucana vivia seu pleno verão. Já era noite quando ele desceu na Estação das 5  Pontas, bem próximo ao Forte de mesmo nome. Passou na casa de um amigo e depois se dirigiu para o centro. Ficou umas duas horas zanzando pelo entorno da Pracinha da Independência à procura do seu inimigo figadal. Passava um pouco de nada das oito da noite quando avistou quem procurava. O capitão tinha sangue nos olhos e carregava na cinta um revólver e uma faca.

O rico e poderoso coronel Júlio Brasileiro estava sentado no elegante e luxuoso Café Chile, de onde se avistava o prédio do Diario de Pernambuco. O local só comportava a frequência da elite pernambucana. O coronel estava na companhia de dois amigos. Vestia fraque, colete, calça listrada, chapéu e sapatos bem lustrados. Com exceção da camisa branca, toda a vestimenta era na cor preta. As abotoaduras de ouro se sobressaíam dos seus punhos. A sua elegância chamava a atenção de funcionários e clientes. A sua identificação logo correu de mesa em mesa. Portava uma pistola importada e um reluzente punhal  de cabo de madrepérola. Tinha pedido ao garçom um sorvete. Mas, não teve tempo de saborear sua guloseima. Em poucos instantes, o capitão Sales entrou no Café Chile. O primeiro tirou atingiu o coronel no rosto de raspão. O capitão se aproximou e desferiu o segundo tiro, que atingiu seu inimigo na boca a uma distância de 2 metros. O coronel tentou puxar a pistola e um terceiro tiro acertou o seu peitoral. Mesmo assim, ele partiu pra cima do seu agressor. O capitão se assombrou com o destemor do coronel e correu em direção à Praça da Independência. Com a Mauser em punho, o coronel saiu correndo para também balear seu inimigo. Mas, os ferimentos eram graves e ele foi atingido por mais um tiro, desta vez no abdômen. Caiu agonizante na calçada do Hotel Lido. Uma poça de sangue se formou ao redor do seu corpo, encharcando a sua elegante vestimenta. Alguém conseguiu a proeza de lhe acender uma vela.

As chamas ainda estavam acesas quando o coronel, aos 54 anos, deu seu último suspiro. Seu corpo foi levado para dentro do saguão do hotel, que fechou suas portas. Estava definitivamente fora de combate um dos homens mais poderosos de Pernambuco. Sua necrópsia, no IML, em Santo Amaro, no Recife, ao lado do Cemitério que leva o mesmo nome do bairro, foi acompanhada por Dantas Barreto, ex-governador de Pernambuco e senador, Neto Campelo, futuro ministro do Governo Dutra, desembargadores, deputados estaduais, a cúpula da Polícia Civil e representantes do governador Manoel Borba. No Palácio do Campo das Princesas, foi acesa a luz vermelha.

Em sua ampla residência de Garanhuns, ao receber um telegrama comunicando o assassinato do marido, a viúva Ana Duperron Brasileiro culpou os integrantes da oposição e baixou a sua sentença: “Só derramarei minhas lágrimas pelo meu marido quando todos os culpados pagarem pela morte dele”.

Na vingança pela morte do coronel, 18 pessoas foram mortas poucas horas depois do assassinato.

Foi Ana Duperron que fez da sua casa um quartel-general para arquitetar a vindita. Reuniu todos os parentes do marido e pediu que cada um arregimentasse o maior número possível de jagunços. Essa mão de obra do crime foi importada, em sua maioria, de Brejão, terra de origem da família Brasileiro.

Astuta e determinada a consumar seu intento de forma eficiente e rápida, Ana Duperron chamou à residência da família Brasileiro o juiz e o delegado de Garanhuns. Entregou ao juiz Abreu e Lima e ao delegado Meira Lima uma lista com os nomes de 13 pessoas que ela e os familiares do marido julgavam terem sido os mandantes do crime. E pediu às duas autoridades máximas do município que recolhessem à cadeia pública quem constasse daquela relação para evitar a morte de cada um. A atitude da viúva do coronel, do delegado e do juiz foi considerada um complô para execução da vingança.

Pouco tempo depois de os “suspeitos” serem recolhidos à cadeia pública, os jagunços arregimentados pela família do coronel Júlio Brasileiro invadiram a prisão armados de rifles e pistolas e abriram fogo. Um cabo e quatro soldados responsáveis pela segurança do prédio foram mortos em combate. Alguns jagunços também não resistiram aos ferimentos. Entre os outros mortos, estavam o coronel Manoel Jardim, ex-prefeito de Garanhuns e ex-deputado e o seu sobrinho Luiz Gonzaga Jardim; Francisco Veloso, também ex-prefeito da cidade; os ricos comerciantes e fazendeiros Júlio Tavares de Miranda e seu irmão Argemiro Tavares de Miranda, também ex-prefeito de Garanhuns; Sátiro Ivo, um dos mais ricos comerciantes do Agreste, e o médico Antônio Borba Júnior. No dia seguinte ao ataque à cadeia pública de Garanhuns, o corpo do coronel Júlio Brasileiro chegou à cidade e foi enterrado no cemitério local pelos familiares, tendo à frente do cortejo a viúva. Com a tonalidade do seu traje toda em preto, ela usava um longo vestido, luvas e um véu transparente que descia do chapéu para lhe encobrir todo o seu rosto. Quem olhasse pra ela poderia perceber  as lágrimas que escorriam dos seus olhos negros. Depois daquele dia, 16 de janeiro de 1917, uma terça-feira, nunca mais se soube notícia de Ana Duperron Brasileiro.

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