As memórias do pernambucano que elaborou a própria constituição em plena ditadura militar
Jurista, escritor, geógrafo e historiador pernambucano Gilvaldo Peixoto, natural de Exu, apresenta o sétimo livro de sua carreira, às vésperas de completar 100 anos de idade
Publicado: 10/10/2025 às 05:00

Givaldo Peixoto, de volta ao salão nobre da Faculdade de Direito do Recife (Rafael Vieira/DP Foto)
Com os passos confiantes de um rapaz de 26 anos, o jurista pernambucano Givaldo Peixoto supera a imponente escadaria da Faculdade de Direito do Recife (FDR), no bairro da Boa Vista, onde se formou há mais de 70 anos. Às vésperas de completar 100 anos de idade, ele volta à instituição para lançar “Do Processo Inflacionário como Subsídio Estatal para a Concentração de Renda”, sétimo livro de sua carreira como escritor. Fundador de escolas e faculdades, ele dedicou a vida a discutir os problemas do país e chegou, em plena Ditadura Militar, a elaborar a própria proposta de Constituição Federal, no ano de 1978.
“Introduzi a camiseta na Faculdade de Direito”, brinca Givaldo, identificando-se com a informalidade dos estudantes do local. Nascido no dia 3 de dezembro de 1925, na Zona Rural de Exu, no Sertão do Araripe pernambucano, ele ingressou na instituição em 1951, em tempos bem diferentes dos atuais.
Enquanto o mundo atravessava a Segunda Mundial, o Brasil era governado pela ditadura de Getúlio Vargas. “Eu já tinha rodado o país como telegrafista da Aeronáutica e a Faculdade de Direito permitia que eu estudasse e trabalhasse ao mesmo tempo”, conta.
Promotor aposentado mais velho do estado, ele voltou a morar em Exu anos 1990, onde circula até hoje dirigindo o próprio carro, com carteira de habilitação renovada até os 102 anos de idade. Na terra natal, é reconhecido por sua contribuição para a formação educacional da população, especialmente através da fundação das primeiras escolas locais de Ensino Médio, o Grupo Escolar Padre Medeiros e o Colégio Municipal Bárbara de Alencar, batizado em homenagem à exuense que se tornou a primeira mulher presa política do Brasil, em razão de sua participação na Revolução Pernambucana de 1817 e na Confederação do Equador, de 1824.
“A gente conseguiu colocar as escolas em prédios públicos, através de acordos com os gestores. Só que tinha um problema. Eles funcionavam durante o dia e as aulas teriam que acontecer à noite, em uma época em que Exu ainda nem tinha energia elétrica”, lembra Givaldo.
A cidade inteira abraçou o projeto. “Foi uma coisa de construção coletiva. Um tio e um tio-avô meus foram cortar madeira para fazer os móveis escolares. Não era algo com recurso público”, ressalta o advogado Dario Peixoto, filho de Givaldo.
Durante sete anos, professores e alunos frequentavam as aulas portando candeeiros. “A primeira turma, conhecida como turma do candeeiro, vai estar presente no lançamento do livro que também iremos realizar em dezembro, em Exu”, orgulha-se Dario.
No ano passado, Givaldo foi homenageado por uma turma de alunos do Colégio Bárbara de Alencar, no dia 7 de setembro, que marca a data de emancipação política de Exu. “Os estudantes receberam o apelido de ‘Givaldinhos’, porque foram à escola com as tradicionais camisas de botão de papai, de quatro bolsos. Foi muito engraçado”, lembra Dario.
“Do processo inflacionário”
Atualmente, Givaldo trabalha em seis novos livros que pretende lançar. A contragosto, precisou acatar às recomendações médicas para diminuição de sua carga horária de trabalho. “Agora só posso ir até às onze da noite”, comenta.
Licenciado em história e geografia, Givaldo ajudou a fundar faculdades na cidade de Crato, Ceará, e em Petrolina, no Sertão do São Francisco. Ele também discursou na inauguração de Brasília, no Distrito Federal, e dedicou diversos livros ao debate sobre a moeda nacional.
“Não se esqueça de dizer isso na matéria. Moeda não é meio de troca, moeda é um instrumento público de remuneração individual do trabalho social, a título de redistribuição interna da renda nacional. Esse é meu conceito de moeda”, defende.
O professor defende que o advento da moeda permitiu a evolução das relações de trabalho. “Sem ela, o mundo viveu por milênios explorando o trabalho escravo”, destaca. Em suas obras, Givaldo desenvolve uma taxonomia própria para a teoria econômica, que, para ele, tem confundido o conceito de inflação com carestia. “Inflação não esclarece nada, fala apenas de intumescimento, enchimento. Prefiro dizer ‘processo inflacionário’, que fala de recessão econômica em grau superlativo, não propriamente de desvalorização da moeda nacional de curso forçado, como entende a teoria econômica atual”, explica.
Uma constituição própria
Para Givaldo, o processo inflacionário está mais relacionado à escassez de alimentos para o mercado interno. Em sua trajetória como intelectual, a preocupação com a fome é antiga e foi uma das motivações para o desenvolvimento de um ambicioso projeto próprio de constituição federal.
“Naquela época, o voto proporcional só existia no Brasil e na Iugoslávia, só que os eleitores iugoslavos votavam na própria etnia, o que não acontece aqui. No Brasil, atualmente, dos 513 deputados, 400 são milionários”, critica.
Preocupado com o problema da representatividade já nos 1970, ele elaborou uma constituição que considerava o voto distrital, com subdivisões entre os estados, para melhor contemplar as demandas regionais. “Nossa atual Constituição dá muito poder ao legislativo. No meu projeto, os estados também teriam maior autonomia para tomar suas decisões”, explica.
A proposta também levava em conta a concentração populacional do país nos litorais. “Em Pernambuco, por exemplo, nossa população fica toda no litoral. Os empregos no campo, na maioria das regiões, acabaram. Com a ‘robotização’, essa pressão vai aumentar inclusive na classe média, que atua no setor de serviços”, prevê.
Concluído em 1978, o projeto constitucional foi enviado para diversas personalidades da época, como o empresário Antônio Ermírio de Moraes, do Grupo Votorantim, e o deputado federal Ulysses Guimarães, que leu e fez comentários sobre o texto, em um telegrama guardado até hoje nas gavetas do jurista. “Tenho as cartas de diversas editoras agradecendo pela proposta e declinando do convite. Não sei se por falta de interesse ou por causa da censura mesmo. Eu não tinha medo”, sorri Givaldo.

