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Vida Urbana
Conflitos pesqueiros

Crises de ansiedade, assédio e atentados: conflitos pesqueiros penalizam marisqueiras e comunidades tradicionais em Pernambuco

Diario visitou comunidades pesqueiras do litoral de Pernambuco e conta, através de três marisqueiras, como os conflitos pesqueiros no estado têm interferido em seus modos de vida

Marília Parente

Publicado: 04/10/2025 às 05:00

Helena Ivalda quer replantar mangue envenenado por poluição em Maracaípe, no Litoral Sul de Pernambuco/Rafael Vieira/DP Foto

Helena Ivalda quer replantar mangue envenenado por poluição em Maracaípe, no Litoral Sul de Pernambuco (Rafael Vieira/DP Foto)

Não muito distante de uma das praias mais exploradas pelo turismo brasileiro, uma comunidade de marisqueiras está adoecendo. Pelas vielas apertadas da Vila do Campo, na Praia de Maracaípe, Litoral Sul de Pernambuco, não é difícil encontrar relatos de ansiedade e depressão entre as moradoras.

Após ganhar 80 quilos e diversas manchas no rosto, a marisqueira Helena Ivalda do Nascimento, de 38 anos, atribui os sintomas à construção de um muro de 576 metros na beira do mar e do rio. A estrutura praticamente inviabilizou sua principal fonte de renda e deu início a um dos cinco novos conflitos pesqueiros de Pernambuco, segundo anuário produzido pela Comissão Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP).

Muro em Maracaípe - Rafael Vieira/DP Foto
Muro em Maracaípe (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

De acordo com a entidade, os conflitos registrados em Pernambuco envolvem empreendimentos turísticos e privatização de territórios costeiros, que restringem o acesso às praias, mangues e rios. Em entrevista ao Diario de Pernambuco, marisqueiras de três comunidades pesqueiras do estado também mencionam intimidações, ameaças e assédios sexuais como empecilhos à continuidade de atividades tradicionais.

“Eu sinto muita falta de pescar. O meio ambiente é um espaço em que você pode até gritar e ninguém vai dizer assim: ‘Cala a boca’. Porque ali você é livre”, afirma Helena, que é uma das principais lideranças da Associação de Pescadoras Artesanais Mangue Mulher de Maracaípe.

Nascida em um sítio na Zona Rural de Ipojuca, ela herdou da mãe os saberes passados de geração em geração pelas mulheres da família. Nos litorais do Nordeste brasileiro, a coleta de mariscos (pequenos e saborosos animais marinhos) é uma atividade tradicionalmente executada por elas, que conhecem os humores delicados e segredos do mangue.

“Agora, minha filha de 18 anos não quer mais mariscar. Estamos com medo”, comenta.

Um urubu com olhos enormes

 

Câmeras vigiam orla de Maracaípe - Rafael Vieira/DP Foto
Câmeras vigiam orla de Maracaípe (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Dada a intimidade de anos, todo o manguezal conhece Helena Ivalda como “Leninha”. Esta é mais uma identidade da qual ela tem sido forçada a abrir mão, em razão da instalação de câmeras no entorno do muro.

Na tentativa de diminuir a sensação de vulnerabilidade diante do monitoramento constante da praia, as marisqueiras tratam-se por nomes masculinos diante das câmaras. “A gente vende nosso material para os barraqueiros, que ficam na beira-mar. Só que para chegar até eles, precisamos que a maré fique muito seca”, explica Leninha.

Em dias normais, a trajetória tornou-se arriscada. “É muito perigoso, porque não temos como saber onde estamos pisando. A gente precisa arriscar a vida, isso se encontrar um jangadeiro de bom coração que faça o caminho até o mangue. Não temos barco”, lamenta Leninha.

Composto por dezenas de troncos de coqueiros cravados na areia da praia, o muro foi erguido pelo advogado e empresário João Vita Fragoso de Medeiros, com autorização concedida pela Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH), em 2022. Na ocasião, o órgão público havia liberado a construção de uma estrutura de 250 metros.

Amigo do ex-ministro do Turismo Gilson Machado, na época da construção, João Fragoso também tinha proximidade com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Durante seu governo, o advogado compunha o alto escalão da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), onde atuou como gerente de contencioso.

Apesar do prestígio político do advogado, a construção do muro revoltou a sociedade civil e motivou uma audiência pública sobre o caso na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Na ocasião, a CPRH voltou atrás e determinou a retirada da estrutura, admitindo que o muro atrapalhava o acesso à praia e não cumpria as regras ambientais determinadas.

O muro também foi alvo de uma denúncia coletiva, elaborada como entidades como a CPP e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que associa o muro à privatização da Praia de Maracaípe e a violações de direitos das comunidades locais. O documento menciona relatórios de vistoria e fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Superintendência do Patrimônio da União em Pernambuco (SPU), que apontou avanço do muro sobre 1.089,61 metros quadrados de área pública.

Ao identificar a existência de infração na construção, a SPU multou João Fragoso no valor de R$ 124 mil. Já o Ibama observou que a barreira artificial danifica a vegetação de restinga, provocando graves danos à dinâmica costeira, poluindo a praia, o estuário e o mangue com a deterioração dos milhares de sacos de ráfia, um tipo de tecido plástico utilizado na implantação do muro, na areia da praia.

Segundo o órgão, o muro também impede a reprodução de tartarugas na área de restinga, ao inviabilizar o acesso dos animais.

Helena Ivalda, liderança dos pescadores em Maracaípe - Rafael Vieira/DP Foto
Helena Ivalda, liderança dos pescadores em Maracaípe (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Em janeiro deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública solicitando a retirada da barreira artificial. Em seguida, Fragoso procedeu com um interdito proibitório, como é chamada uma ação com o objetivo de proteger um bem – neste caso, o muro.

Segundo ele, que faz a própria defesa, a barreira protege o terreno contra invasões de turistas e de suposta erosão, cuja existência não foi constatada nas perícias do Ibama. Atualmente, o processo corre na Justiça Federal.

Procurado pelo Diario de Pernambuco, João Fragoso não se manifestou. Por sua vez, o MPF informou que, no âmbito da ação civil pública, aguarda um “laudo pericial sobre o caso, cuja realização foi determinada pela Justiça Federal”.

“Hoje eu não sou Leninha, sou o mundo”

 

Leninha relata tentativas de intimidação e ameaças - Rafael Vieira/DP Foto
Leninha relata tentativas de intimidação e ameaças (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Enquanto o acesso à praia segue restrito, as marisqueiras têm trocado o tradicional convívio com o rio, o mangue e o mar por expedientes de 44 horas em bares, restaurantes e pousadas locais.

“É onde muitas sofrem. A maioria das marisqueiras é chefe de família, tem casa pra sustentar, mas ninguém quer deixar de mariscar para trabalhar para os outros. A natureza é a melhor firma que existe”, garante Leninha.

Na Vila do Campo, Leninha alimenta a esperança de voltar ao mangue em pequenas mudas que tem cultivado, nas proximidades da associação. Ao lado de outras marisqueiras da comunidade, ela percebeu que um dos manguezais da região está morrendo. “O mangue está envenenado. Precisa de muito carinho”, lamenta.

O plantio das mudas é uma das poucas que tem preenchido seus dias, desde que precisou deixar a própria casa, por medo de ficar sozinha. Em uma das ocasiões, descreve, um homem desconhecido insistiu para que ela deixasse uma parada de ônibus e aceitasse sua carona.

“Sou mulher, negra e pobre. Se eu morrer, quem vai se importar comigo? Hoje eu não sou Leninha, sou o mundo”, afirma.

“As lanchas viram nossas canoas”

Joelli mostra as redes de pesca da comunidade quilombola do Engenho Siqueira, em Rio Formoso - Rafael Vieira/DP Foto
Joelli mostra as redes de pesca da comunidade quilombola do Engenho Siqueira, em Rio Formoso (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Os antigos, conta a marisqueira Joeli Correia da Silva, de 39 anos, costumavam pernoitar na Praia dos Carneiros, no Litoral Sul, para mariscar e pescar. Esse é um dos hábitos que a comunidade quilombola do Engenho Siqueira, localizada na cidade de Rio Formoso, teve que abandonar em razão da expansão desordenada do turismo na área.

“Eu não vou mais colocar minha filha numa canoa para ir até a praia. As lanchas viram nossas canoas e derrubam o pescado no mar”, comenta Joeli.

 

Canoas utilizadas pelos quilombolas do Engenho Siqueira, em Rio Formoso - Rafael Vieira/DP Foto
Canoas utilizadas pelos quilombolas do Engenho Siqueira, em Rio Formoso (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Imprevisíveis, as ondas produzidas pelos potentes motores de embarcações turísticas de grande porte que circulam na área têm desordenado uma rotina de cerca de 400 anos. Os ancestrais de Joeli chegaram às terras do engenho em meados do século 17, estabelecendo práticas e modos de produção que perduram até hoje pelas mãos das 80 famílias que vivem na comunidade, como a policultura e a pesca artesanal.

“Tenho um amor muito grande pelo meu território, pelo manguezal. Quando a gente tem amor, não vai pescar só na intenção de trazer, mas de cuidar. A gente não vai tirar aquele ‘sururuzinho’ pequeno, mas os que já estão grandes”, ensina Joeli.

Joelli, marisqueira e quilombola de Rio Formoso - Rafael Vieira/DP Foto
Joelli, marisqueira e quilombola de Rio Formoso (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Marisqueira “desde a barriga da mãe”, ela relata que anda preocupada com o despejo de lixo e esgoto nas águas da região. “Minha mãe pegava dois, três quilos de aratu por maré. Hoje, você dá três voltas na maré para tirar um ou dois quilos. Com sururu, a mesma coisa”, conta Joeli.

Vizinhança

Recentemente, um comprador desconhecido adquiriu a Fazenda Praia da Pedra, único acesso para a Praia da Pedra, onde a comunidade do Engenho Siqueira também desempenhava suas práticas de pesca. O acesso ao local dependia da boa relação dos quilombolas com o antigo proprietário.

Agora, a praia recebeu cerca de proteção e tem como único acesso uma estrada estreita e de terra da qual, segundo relatos dos moradores, “só é possível voltar de ré”. Ao redor, outras propriedades privadas se aproximam do quilombo, preocupando a comunidade.

 

Quilombolas do Engenho Siqueira apontam redução do pescado no manguezal - Rafael Vieira/DP Foto
Quilombolas do Engenho Siqueira apontam redução do pescado no manguezal (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Entre os quilombolas, o consenso é o de que a titulação do território é essencial para garantir a saúde do mangue e a segurança da população. “Com isso, a gente teria mais controle das nossas terras”, afirma Joeli.

Atualmente, o Engenho Siqueira já possui reconhecimento da Fundação Palmares. Questionado pelo Diario, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) disse que já existe processo de regularização fundiária do território.

“A superintendência do instituto em Pernambuco informou que já foi realizada uma reunião com as famílias da comunidade para tratar da titulação”, diz a nota enviada pelo órgão.

Ainda segundo a regional, haverá um novo encontro para consulta da comunidade acerca da continuidade do processo. Na ocasião, deve haver a “abertura dos trabalhos a fim de iniciar o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID)”.

Reserva extrativista

 

Pescador e quilombola, Moacir de Santana cobra criação da Resex para proteger manguezais da região - Rafael Vieira/DP Foto
Pescador e quilombola, Moacir de Santana cobra criação da Resex para proteger manguezais da região (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

De acordo com Moacir de Santana, vice-presidente da Associação da Comunidade Quilombo do Engenho Siqueira, a comunidade também luta pela instituição da Reserva Extrativista Rio Formoso (Resex Rio Formoso) ao longo de um território de 2.240,94 hectares, distribuídos entre os municípios de Sirinhaém, Rio Formoso e Tamandaré. A área representa um dos últimos grandes remanescentes de manguezal do estado.

As Resex são áreas utilizadas por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura e na criação de animais de pequeno porte. “Essa reserva beneficiaria mais de 3.000 famílias da região. Dentro dessa área, nossa pesca estaria protegida. Temos mais de vinte modelos de pesca, como as pescas de aratu, de redinha e de arrasto”, explica Moacir.

A criação da Resex depende da assinatura da governadora de Pernambuco, Raquel Lyra (PSD). Após a aprovação estadual, o projeto ainda precisa ser sancionado pelo Presidente da República. “A dificuldade que a gente tem está na liderança política, que não tem interesse de assinar”, acrescenta Moacir.

Procurado pela reportagem, o Governo do Estado não se manifestou sobre a criação da reserva extrativista.

União

Para fugir dos assédios, marisqueiras de Tamandaré têm pescado juntas - Rafael Vieira/DP Foto
Para fugir dos assédios, marisqueiras de Tamandaré têm pescado juntas (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Presidente da Colônia de Pescadores Z5 de Tamandaré, a pescadora e marisqueira Madalena Silva Santos também vê na Resex uma possibilidade de fortalecimento de seu trabalho. Atualmente, ela lidera 512 pescadores, dos quais 285 são mulheres. “A orla está cheia de hotéis e restaurantes. A gente só tem dois acessos para trabalhar”, conta Madalena.

Com a privatização dos lotes na praia, as pescadoras e marisqueiras precisam enfrentar longas caminhadas, com quilos de pescados nas costas ou em cestos apoiados sobre suas cabeças. Nos restaurantes e hotéis, a parada de veículos só é permitida para quem topa arcar com altos valores para estacionamento.

“Um dos corredores, vizinho à pousada Bora Bora, só tem três metros de largura. De lá, para chegar no nosso setor, é uma hora de caminhada. Imagina a gente com 50 quilos nas costas andando isso tudo?”, afirma Madalena.

Madalena Silva, presidente da Colônia de Pescadores de Tamandaré - Rafael Vieira/DP Foto
Madalena Silva, presidente da Colônia de Pescadores de Tamandaré (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

Aos 53 anos de idade, a marisqueira Maria Auxiliadora da Silva, conhecida entre as companheiras de trabalho como Dorinha, desenvolveu uma série de problemas de saúde em razão do excesso de esforço físico ao carregar seus pescados. “Cinco ‘bicos de papagaio’, uma hérnia de disco, desvio na coluna e artrose. São os maus da marisqueira. Não posso caminhar tanto com esse peso”, lamenta.

Assim, a restrição do acesso ao mangue tornou a atividade praticamente inviável. Por vezes, o custo de um transporte por aplicativo é quase igual ao apurado na pesca. “Por isso, a gente começou a organizar os mutirões. Conseguimos um ônibus e colocamos todo mês entre 50 e 60 mulheres marisqueiras”, conta Madalena.

Assédios

A marisqueira Maria Auxiliadora da Silva, conhecida entre as companheiras de trabalho como Dorinha, desenvolveu  - Rafael Vieira/DP Foto
A marisqueira Maria Auxiliadora da Silva, conhecida entre as companheiras de trabalho como Dorinha, desenvolveu (crédito: Rafael Vieira/DP Foto)

A privatização da orla, explica Madalena, não é o único motivo pelo qual ela organiza os mutirões de marisqueiras. “Antigamente eram muitas agressões contra as marisqueiras. Homens, tanto locais quanto turistas, ficavam assediando a gente durante nosso trabalho”, lamenta.

Uma das marisqueiras associadas à colônia, Jaete Maria Genilda, de 61 anos, confirma que as importunações sexuais contra as trabalhadoras da região seguem rotineiras. “Melhor nem dar resposta para as coisas que ouvimos. A gente responde cantando, brincando e fazendo nosso trabalho com alegria”, comenta.

Apesar disso, a colônia de pescadores já acompanhou casos de violência sexual contra marisqueiras e pescadoras em atividade no manguezal. “A mulher chegou na delegacia e disseram que ela estava com ‘safadeza’. Quando vou pescar, não ‘arreio’ meu facão. A gente tem que ter autoridade, mesmo que o medo seja grande por dentro”, afirma Madalena.

Com o acesso à praia restrito e a forte sensação de insegurança, ela tem lutado para conseguir canoas próprias para a colônia. Diante deste cenário, as marisqueiras esperam que as embarcações viabilizem mais pescas coletivas.

“Com três canoas, a gente levaria 30 marisqueiras por vez. É um absurdo o pescador não ter acesso a todos os setores para pescar, somos filhos naturais de Tamandaré. Vamos continuar lutando pelo respeito que a gente merece”, completa Madalena.

 

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