Música Frevo é preservado por instrumentistas carnavalescos Musicistas de orquestras do Recife e de Olinda destrincham bastidores dos grupos e perpetuam tradições carnavalescas através de relação afetiva com o ritmo

Por: Isabelle Barros

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 30/01/2017 19:39 Atualizado em: 30/01/2017 18:26

Tiago Alves valoriza a interação entre Orquestra Guabiraba e a comunidade onde ela nasceu. Crédito: Peu Ricardo/DP
Tiago Alves valoriza a interação entre Orquestra Guabiraba e a comunidade onde ela nasceu. Crédito: Peu Ricardo/DP


Para resistir às baixas demandas por apresentações fora do período carnavalesco, orquestras de frevo de rua aproveitam as semanas anteriores à folia de Momo para recrutar novos instrumentistas, movimentar agenda de shows e redobrar a frequência de ensaios. Ocupam praças, quadras de colégios particulares, ruas da periferia, clubes tradicionais da capital pernambucana. Grupos como a Orquestra 100% Mulher, Guabiraba Frevo Orquestra e Bala Doida revelam, nessa época, a tenacidade de seus instrumentistas. "Nos outros meses, transformamos a orquestra em banda de baile. Mudamos o repertório e nos adaptamos a festas de São João, casamentos, formaturas", conta o maestro Lourenço Maurício da Luz Neto, regente da Orquestra Som de Pernambuco, com 46 membros.

Confira o roteiro de shows e prévias no Divirta-se


É assim que funciona, explicam: grupos de dez, 20, 40 pessoas esperam um ano pelo carnaval. No intervalo entre um período momesco e outro, ensaiam semanalmente, reinventam os catálogos de canções. Para Neto, não existe um padrão para os instrumentistas do segmento: "São músicos profissionais e semi-profissionais que, apaixonados por seus instrumentos musicais, procuram orquestras para se profissionalizar. A atividade requer apuro técnico, mais do que outros ritmos, além de responsabilidade e domínio dos instrumentos. O músico pode ser auto-didata, mas o ideal é que tenha uma formação básica em conservatório ou escola de música", explica o maestro.

O tempo necessário para essa formação é relativo. Para Ademir Araújo, o Maestro Formiga, frevos de fácil execução como alguns concebidos pelo Maestro Nunes, morto no ano passado, poderiam atrair novos talentos ao ramo quando incorporados ao processo básico de formação musical. “As pessoas poderiam aprender a tocar algum clássico do frevo em um mês. É viável, tudo depende da metodologia. Precisamos, antes de tudo, entender o frevo como um tipo de música instrumental tão importante e preciosa quanto uma sinfonia clássica. Para mim, Nelson Ferreira é tão relevante quanto Beethoven”, defende.

Ao Viver, músicos de orquestras ativas nas ruas do Recife e de Olinda revelaram curiosidades dos bastidores e da formação das orquestras de rua, hoje vistas como bandeiras de resistência de antigos carnavais.


Tiago Alves - Guabiraba Frevo Orquestra
O saxofonista pernambucano Tiago Alves, 29 anos, decidiu fundar uma orquestra de frevo no bairro da Guabiraba, no Recife, há quase dez anos. Os ensaios, realizados nos sábados à noite, atraem moradores do bairro à praça central, próxima ao terminal de ônibus da Guabiraba. Alguns se aproximam, assistem à apresentação do grupo, pedem frevos clássicos, têm os pedidos atendidos sem restrição. Tiago valoriza a interação entre a orquestra, a única dedicada exclusivamente ao frevo naquelas imediações, e a comunidade. A única instrumentista que não vive na Guabiraba, a saxofonista Carla Michelle, de Olinda, é também a única mulher do conjunto formado por 20 músicos, criado a partir de relações de vizinhança e amizade entre eles.

“Montei a Guabiraba Frevo Orquestra com amigos, ex-colegas de banda da adolescência, pessoas que moravam perto de mim. Antes, eu tocava em diferentes orquestras a convite dos maestros, esporadicamente. É como a maioria das pessoas ingressa no ramo, fazendo participações”, explica o instrumentista sobre o início da carreira. A paixão pelo carnaval, ele estima, move nove entre dez musicistas recém-chegados a orquestras de frevo. A formação necessária ao ofício é relativa, uma soma de aptidão, treino e instrução técnica. Tiago Alves estudou teoria musical na Escola de Artes João Pernambuco, na Várzea, durante cinco anos, e estima em quatro meses o período básico de adaptação de um músico iniciante à orquestra. “Se o instrumentista já dominar partituras e técnica, é mais simples. Basta afinar sua performance com a dos outros membros. Requer dedicação, pois a execução do frevo é tecnicamente mais difícil do que outros ritmos”, diz.

No caso do maestro, estudar música instrumental clássica foi determinante para seguir no ramo. Contribuiu, segundo ele, para a criação de arranjos, versões, adaptações das notas originais. A saxofonista Carla Michelle concorda: “A formação instrumental serve de base a todo apuro técnico que vem depois. No meu caso, convivi desde criança com a orquestra de frevo do meu pai, o Maestro Dinho de Olinda, que toca trombone de vara. Foi essencial vivenciar o frevo ainda na infância, depois estudar música, harmonia, partituras, percepção”, avalia ela, graduada no Centro de Formação Musical, no Centro do Recife.

Carla vive de música, se divide entre a orquestra e outras agremiações. Em algumas delas, toca clarinete. Treina e estuda os dois instrumentos diariamente. “Com o emprego de motorista, minha principal fonte de renda, não consigo praticar sax todos os dias. Ainda é inviável sobreviver exclusivamente da música, principalmente do frevo”, analisa Tiago. Cada membro da Guabiraba Frevo Orquestra recebe entre R$ 150 e R$ 200 por apresentação. Fora do período carnavalesco, executam cirandas, maracatus e canções populares em festas particulares na Região Metropolitana do Recife.


Felipe Santana - Orquestra de Frevo Bala Doida
Em atuação há cinco anos, a Orquestra de Frevo Bala Doida, fundada pelo trombonista Felipe Vitor Santana, 25 anos, e mais cinco amigos, reúne dez instrumentistas pernambucanos. É resultado de associação entre músicos que se apresentavam esporadicamente em diferentes orquestras. Felipe, um dos líderes do grupo, toca trombone há nove anos, aprendeu a base do que sabe no Colégio Virgem Imaculada, no Janga, durante o ensino fundamental. Tomou gosto pela música, comprou livros, estudou teoria musical, treinou tudo em casa. Exige mais dedicação do que base teórica dos demais membros da orquestra.

“Há muita desavença nesse meio. Muitos músicos se sentem explorados e mal remunerados nos grupos que integram. Usufruem do nosso trabalho sem recompensas, querem lucrar em cima da gente. Buscávamos relações de trabalho mais justas quando decidimos criar a Bala Doida”, conta Felipe. Ele considera o segmento corrompido. Tenta blindar os companheiros de grupo. A Orquestra de Frevo Bala Doida tem agenda fixa de apresentações no Clube Náutico Capibaribe, nos Aflitos, Zona Norte do Recife, e anima grêmios como Preto Velho e Pitombeira dos Quatro Cantos, em Olinda. Se apresentam, ainda, em eventos particulares, bailes e durante intervalos e abertura de jogos amadores.

As atividades são complementação de renda para os integrantes da orquestra, que se classificam como músicos semi-profissionais. O período mais movimentado do calendário deles é o primeiro bimestre do ano. “Entre janeiro e fevereiro, fazemos cerca de 30 apresentações. É quando temos o cronograma mais apertado”, conta. Segundo Felipe Santana, é impossível sustentar a casa a partir dos rendimentos da OBD. Cada membro tem outra carreira e fonte de renda em paralelo à Bala Doida, com a qual ensaiam uma vez por semana. Nos meses que antecem o carnaval, os ensaios são dobrados, às vezes triplicados. A frequência com que compartilham o palco também. O grupo é formado por saxofones, trombones, trompetes, surdo (tambor) e caixa.

“A formação musical vem da infância. Para formar músicos de frevo, manter as orquestras, é preciso que os meninos convivam com o ritmo desde cedo. Eu tive forte influência do meu pai, Djalma, e da minha mãe, Ana Cristina, que ouviam frevo todos os dias. Eles compravam CDs e fitas, porque frevo já não era popular nas rádios. Até hoje não é. Mas seria fundamental, essa popularização, para atrair mais instrumentistas”, opina o músico.


Babá do Trombone - Grêmio Musical Henrique Dias
O feriado de 7 de setembro marca, para muitos, a aceleração dos preparativos para o Carnaval. A antecedência é necessária para que a folia saia de forma impecável e o ritmo fica frenético a partir de janeiro. É o que conta o trombonista Adriano Ferreira Pinto, conhecido como Babá do Trombone, que se equilibra, na música, com duas ocupações: presidente do Grêmio Musical Henrique Dias, no Sítio Histórico, e instrumentista na Orquestra Contemporânea de Olinda. “Em Olinda, a gente já cresce escutando frevo e isso gera vontade de tocar”, diz.

O início da trajetória de Babá na música se deu aos 15 anos, quando aprendeu a tocar na Casa da Criança de Olinda, projeto social criado pelo colecionador italiano Giuseppe Baccaro (1930-2016). Aperfeiçoou seus conhecimentos no Centro de Criatividade Musical do Recife, no Conservatório Pernambucano de Música e passou a tocar nas orquestras de Maestro Carlos e Maestro Oséas. Hoje com 40 anos, o instrumentista fica à frente da orquestra nas apresentações de rua. “É preciso estar sempre estudando, em contato com o instrumento e procurar tocar com os melhores. Tem gente que só pega instrumentos nos ensaios de Carnaval, a partir de outubro, novembro. Muita gente aprende a arte musical e abandona. Os instrumentos são caros, o frevo é tecnicamente difícil de tocar. É complicado ter uma renovação”.

A própria rotina de Babá do Trombone ilustra o quanto é difícil viver de música. Além de tocar, ele é funcionário terceirizado da Compesa e ainda trabalha como taxista nas horas vagas. Embora a ligação com a música não esmoreça, ele afirma que é preciso estar atento para não ter sua mão-de-obra desvalorizada. “Todo mundo quer tocar, quer ganhar, mas esse é um trabalho feito com muito esforço. Há orquestras que praticamente não se preparam e colocam o cachê lá embaixo. Para completar, quando você é contratado pelo poder público, demora meses para receber”.

Os ensaios do grêmio, atualmente com 30 integrantes, acontecem na noite de quinta e já são conhecidos pelos turistas e moradores do Sítio Histórico. O local também serve como local de encontro para outras orquestras e está aberto de domingo a domingo. Após o Carnaval, as portas estão abertas para novos alunos de todas as idades, com aulas gratuitas de teoria musical e prática de instrumento. “O Grêmio Henrique Dias é uma espécie de maternidade dos músicos. Quando eles dominam mais a técnica, vão para bandas militares, para outros estados. Comemoramos quando conseguimos formar quatro deles a cada vinte matriculados. Mesmo assim, todo ano ao menos um consegue terminar o curso”.


E
lizabete Bezerra - Orquestra 100% Mulher
A clarinetista e saxofonista Elizabete Bezerra, com 47 anos de idade e 31 de música, ilustra a dualidade presente na vida dos instrumentistas que se dedicam a tocar frevo. Integrante da Banda Sinfônica do Recife, a musicista divide seu tempo com a Orquestra 100% Mulher, cujo repertório varia entre os sucessos dos bailes e os clássicos do gênero musical pernambucano. “É muito complicado sobreviver só de música. Só dá para tirar algum dinheiro com o frevo perto do Carnaval”, atesta. Ainda assim, esta oportunidade de ampliar os ganhos foi o fator determinante para Bete, como é conhecida, optar por aprender a tocar outro instrumento. “Comecei com o clarinete e até tocava em blocos líricos, mas eu não tinha a opção de tocar em orquestras porque meu primeiro instrumento não era usado nelas. Há 15 anos, resolvi aprender a tocar sax e estudei em casa durante seis meses”.

A partir de outubro, os ensaios da Orquestra 100% se intensificam, voltados para as apresentações que surgem próximas ao Carnaval. No resto do ano, eventos diversos, como casamentos e bailes de debutantes, completam a agenda do grupo, e isso inclui a execução de músicas dos mais variados gêneros. Quanto mais perto o período momesco chega, mais a preparação física e mental precisa ser bem feita. “O frevo tem muita articulação, muita dinâmica e exige muito de quem toca instrumentos de sopro e metais. Fazemos apresentações de 2, 3 horas na rua e você está sujeito a tudo. Muita gente está bêbada e não presta atenção para ver se está esbarrando em você. Precisamos estar prontos para aguentar”.

Além da dificuldade técnica do frevo, o machismo se tornou um obstáculo na trajetória da Orquestra 100% Mulher. “Já sofremos muito preconceito. Uma coisa me marcou muito: quando começamos com a orquestra e tocávamos em locais fechados, algumas pessoas chegavam a subir no palco para ver se não estávamos usando playback. Também tivemos de procurar instrumentistas em conjuntos de igreja, em bandas marciais do interior e nem sempre essas musicistas sabiam tocar frevo, mas com o decorrer dos ensaios elas pegavam o jeito. Se uma das integrantes tem bebê, ou passa por algum imprevisto, é muito difícil encontrar uma mulher de última hora para tocar. Às vezes, precisamos substituir por um homem para não perdermos a apresentação e ouvimos gracinhas por isso”.



Entrevista // Ademir Araújo, conhecido como Maestro Formiga

Quantos anos de formação musical são necessários para integrar uma orquestra de frevo?
Isso é relativo. Até hoje não se tem uma metodologia estabelecida. O tempo de formação depende da matodologia aplicada. É possível que um músico amador toque seu primeiro frevo em um mês. Isso se você adaptar o ensino da música para o contexto da cultura local. Em vez de aplicar um metódo europeu tradicional de ensino clássico da música, é possível substituir o ABC da música erudita pelo ABC do frevo propriamente dito. Em vez de passar ao aprendiz as notas de uma música que não tem relação com ele, por que não lhe ensinar um frevo que ele já conhece, que ouve desde a infância, que faz parte da cultura dele?

Existe uma inclinação maior no estado para os instrumentistas seguirem carreira no frevo?
Sim, existe influência da cultura popular. Se você decidir estudar música hoje e escolher um instrumento, sendo um trompete ou um sax, por exemplo, a tendência é que você desenvolva inclinação para o frevo. É muito comum aqui em Pernambuco, a terra do frevo, essa associação entre os instrumentos de sopro e o carnaval. Quem toca esses instrumentos já pensa em tocar Vassourinhas, desfilar numa troça, se apresentar num clube. Dentro dessa motivação cultural, as coisas fluem mais naturalmente.

m sua opinião, qual o espaço das orquestras de frevo na cena da música pernambucana atualmente?
Houve um avanço em alguns sentidos. Quando se falava em frevo nas universidades, em ambientes acadêmicos, era uma coisa terrivel. Hoje tem orquestras de frevo universitárias. O Conservatório Pernambucano incorporou o acordeon. As resistências estão sendo derrubadas. Mas ainda falta os doutores se reunirem e pesquisarem sobre o frevo, estudarem o frevo como algo instrumental tão importante quanto uma sinfonia. As orquestras, sobretudo as de rua, ainda precisam ser mais valorizadas. Ainda acham que orquestra de palco é superior, diminuem os cachês das orquestras de rua, acham que é algo menor. É um equívoco. Isso afasta as pessoas, diminui o interesse.

Acredita que as orquestras de rua deveriam protagonizar o carnaval? Seria viável?
Se houvesse investimento e maior adesão. É claro que não faz sentido colocar uma orquestra com dez pessoas na Avenida Dantas Barreto, no Centro do Recife, que o som deles não será suficiente. É preciso uma massa sonora de cerca de 40 pessoas. Festas como o desfile do Galo da Madrugada, com todo respeito, esmagaram o frevo de chão, colocaram os palcos dos trios elétricos no centro da festa. Eu estou até pensando no que os netos desses instrumentistas de hoje vão fazer... será que vai ter carnaval com orquestras na rua? Ou haverá somente trios?

O que falta para essa maior valorização do frevo a que você se refere?
Falta estudo, pesquisas sobre o ritmo, reuniões públicas. É preciso convocar jornalistas, o cara que vende picolé no carnaval, porta-estandartes, mestres de fanfarras, presidentes de clubes, para conversar sobre o frevo. Leio textos que dizem que o frevo está ultrapassado, mas não está. Nós temos mais de 100 frevos de rua, mais de 100 frevos de bloco... muitos deles com frases e temática modernos, que desapareceram por não serem propagados. Se você constroi uma base sólida, pode erguer um prédio de 200 andares ou de dois andares.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL