Cinema Indicado ao Oscar, filme russo costura medo e esperança Filósofo Érico Andrade interpreta signifcados presentes em Leviatã, candidato ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, premiado em Cannes e no Globo de Ouro, em cartaz no Recife

Publicado em: 27/01/2015 20:46 Atualizado em: 27/01/2015 16:40

Monstro marinho é metáfora para uma Rússia contraditória. Foto: Imovision/ Divulgação
Monstro marinho é metáfora para uma Rússia contraditória. Foto: Imovision/ Divulgação

* Por Érico de Andrade

Denso. Igreja, alcolismo e poder. Tudo num mesmo roteiro. Estórias das diferentes facetas da cultura russa que precisam se cruzar num tempo curto de um filme. Andrey Zviaguintsev consegue. Roteiro impecável. A primeira cena traz todos os elementos da narrativa. Na pauta do diálogo a ameaça iminente do poder arbitrário do Leviatã. Na disposição das cadeiras, Kolia com o seu filho de um lado, representa o rude, a Rússia distante, fria e sem esperança (como diz Kolia mais na frente em relação ao seu próprio filho: ele nunca irá se adaptar às exigências de Moscou, das escolas). Do outro lado da mesa, a Rússia de Moscou: elegante, polida no trato, educada, personificada no filme por Dimitri. No mesmo lado da Rússia a esposa de Kolia - Lilya - aparece cética quanto ao entiado e com corpo levemente inclinado para Moscou, para Dimitri. São amantes. Bastou essa cena para que no momento em que Lilya aparecesse nua ao lado de Dimitri não nos espantássemos. Tudo fazia sentido porque compunha uma mesma narrativa de abnegação imposta a Kolia que, ao contrário de Jó, a personagem da bíblia, não se contentava com o que parecia ser seu destino: viver sob a espada de Leviatã. Viver como inseto, com medo.

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Na primeira provação Kolia conhece no tribunal a sua completa e constante impotência. Rostos são desfocados para dar um close em cada expressão das diversas personagens que estão na sala de julgamento. Semblantes com preocupações distintas, alguns burocráticos, mas todos eles enfeitiçados pelo discurso monolítico, imparcial porque indiferente, da justiça. A fala repetitiva, apressada da juíza - não é preciso entender as leis da Rússia para saber que ela está presente na cena apenas para punir Kolia - concentra os olhares que são conduzidos, num plano bastante interessante, para a própria juíza e para a sua oratória completamente indiferente ao sofrimento de Kolia e de tantos outros; como, aliás, mostra a cena em que um casal fora da sala de julgamento aguarda em prantos o seu veredicto, dado já na sua condição de oprimidos. Após o resultado da sentença, esperadamente negativo, o desespero se abate sobre Kolia e Lilya que olham para direções opostas, mostrando as diferenças entre eles que atravessam toda narrativa. Diferença logo em seguida apresentada pelo tempo diferente em que entram no carro.

Na relação ainda turva entre a igreja e o Estado é iniciada numa cena em que o padre tenta orientar o prefeito. Um diálogo sobre fé e dinheiro é finalizado num tomada da sala, que até então não aparecia no plano cujo foco privilegiava apenas as expressões do padre e do prefeito, em que se mostra uma mesa farta e um quadro religioso bonito, caro. Deus vela pela sorte dos que encarnam o seu poder; igreja e estado. Deus fortalece o Leviatã. Quando o prefeito segue com seu motorista no carro um close sobre o crucifixo, no retrovisor interno, mostra que Deus ilumina, mesmo numa estrada escura, seu caminho. A função da igreja no filme é lastrear moralmente a arbitrariedade do poder público. Isso permite que o prefeito vá, depois de conversa com o padre, à casa de Kolia e reafirme a sua condição de inseto. Brutalmente exposta quando na manhã seguinte uma mosca aparece no vidro da sua casa, na janela, e não consegue entender o que a prende.

Mais adiante, em uma cena, que poderia ser destinada apenas a revelar os amantes para as demais personagens, a história da Rússia aparece para mostrar o desamparo que invade a vida das personagens, a falta de perspectiva diante de uma vida monótona que só pode ser suportada com vodka. Como diria Maiakovisk é melhor morrer de vodka do que de tédio. A história aparece nas fotos, emolduradas, dos diferentes presidentes da Ex União Soviética; escolhidos como alvos para a prática de tiro. O presente Russo, não menos obscuro, é aguardo sem qualquer ilusão. Ele será logo mais fuzilado, diz uma das personagens, como de costume, bêbada.



A arbitrariedade do poder público, que prende Kolia quando ele, alimentado pela ilusão de Moscou, representada pelo advogado e amigo Dimitri, tenta denunciar o prefeito se intensifica radicalmente quando pelo peso da culpa cristã Lilya se mata. O que era sofrimento pela perda abrupta de Lilya transforma-se numa rede de traição. As marcas dos socos deferidos na ocasião da descoberta da traição, a tradição mesma, a posição de policial do amigo e o própria temperamento de Kolia são convertidos em prova de que ele matou Lilya. O investigador repete o tom monolítico do estado para forçar uma confissão. Discurso impávido. Kolia resiste. Não confessa. A sentença, desde sempre esperada, é anunciada de modo invariavelmente monolítico. Kolia é condenado. A condenação é o desfeche de uma vida condenada. A esperança residual que o filme deixa repousa sobre dois fatores: Kolia não confessa o crime que não cometeu, guarda a sua dignidade, e o casal de amigos se dispõe a cuidar do seu filho em cena comovente. No entanto, o que se destaca no filme é a força do Leviatã que destrói violentamente a casa de Kolia e de forma indiferente a sua história porque a casa é destruída com tudo que guarda dentro de si. Se não sabemos ao certo exatamente a melhor representação da figura do Leviatã, é certo que esse mostro estende seus tentáculos de diversos modos, como mostra o filme, mas especialmente na forma da igreja e do estado cúmplices de uma mesma opressão.

* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco
* Érico Andrade é filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco





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