Religião

Os guardiões dos desamparados

Voluntários da Pastoral Carcerária levam a vida a pôr em prática o lema %u201Cfazer o bem sem olhar a quem%u201D

Publicado em: 24/02/2018 16:04

Joana, em cadeira de rodas, precisava de ajuda para atividades básicas. Para Elias restava uma bermuda. A hérnia inguinal cresceu a ponto de nenhuma outra veste lhe caber. Os nomes são fictícios. As histórias, reais. Joana estava detida em Abreu e Lima e Elias em Vitória de Santo Antão. Nas duas situações, os resgates para um mínimo de dignidade vieram com a intervenção da Pastoral Carcerária, organismo católico voltado à promoção da dignidade humana e à evangelização nas prisões. Tarefas nada fáceis para quem se depara com vítimas da violência institucional, uma dos aspectos tratados pela Campanha da Fraternidade 2018, cujo tema foca na superação da violência.

“Tem muita injustiça e carência nas prisões”, resume o advogado José Valdemiro da Cruz, 67 anos, ao contar as histórias de Elias e Joana. Ambos eram pobres, sem condições de contratar advogados. José Valdemiro encontrou os dois como integrante do Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Olinda e Recife, condição que o permitiu visitar as unidades prisionais do estado. “O caso da hérnia chocava. Estava prestes a estourar e o homem não tinha tratamento médico”, desabafa.

O primeiro passo foi fotografar a situação de Elias. Em seguida, houve uma mobilização da pastoral, que está presente hoje em todos os estados do Brasil, exceto Rondônia. Surgiram entraves, mas ao fim, Elias curou-se e reconquistou a liberdade. Joana mudou de regime, do fechado para o aberto. Foram duas histórias com fins razoáveis, que nem sempre se repetem na rotina dos membros da pastoral. Simples de entender.

A organização, embora avalizada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), promotora da Campanha da Fraternidade, sofre com o quadro de voluntários. Entre si, os colaboradores dão como certa a afirmação do evangelista Mateus de que “a messe é abundante, mas os operários poucos”. São poucos para visitar as nove unidades prisionais do Recife, Itamaracá, Igarassu e Abreu e Lima, onde fica mais da metade da população carcerária do estado, e a cadeia pública no município de Escada.

Na ativa existem cerca de 130 pessoas. Gente como a freira Maria Auriêta Duarte Xenofonte, 79 anos, criadora e responsável pela Turma do Flau, entidade sem fins lucrativos fundada em 1982, em Brasília Teimosa, que atende adolescentes infratores e em vunerabilidade (leia matéria nesta página).
A lista de integrantes da Pastoral Carcerária inclui religiosos, mas a grande maioria é de leigos. Entre eles está o advogado Rui Albuquerque, atual coordenador arquidiocesano da pastoral, e José Valdemiro da Cruz, bancário aposentado que, após encerrar as atividades profissionais, decidiu cursar direito para auxiliar detentos pobres. “Pobres que muitas vezes continuam presos, mesmo tendo cumprido suas penas”, disse José Valdemiro, cujo despertar para a questão dos presos ocorreu na Quaresma de 1997. Na época, a campanha da CNBB tinha por tema Fraternidade e os encarcerados e por lema Cristo liberta de todas as prisões. O caminho às cadeias e às unidades prisionais não era fácil, ele descobriu.

Os obstáculos de acesso aos presos são diversos. Da ausência de uma política única de entrada e saída dos agentes pastorais às prisões à compreensão naturalizada nos brasileiros de que se alguém está preso é por ser bandido, e se é bandido é para ser banido, esquecido. Aliado a isso, enfatiza a Campanha da Fraternidade 2018, há a superlotação carcerária, com unidades, a exemplo de Pernambuco, em que corredores e degraus se transformam em camas. Quase metade dos homens e mulheres privados de librdade é formada por presos provisórios. Gente encarcerada por meses e anos sem qualquer sentença judicial, sujeita a condições degradantes e à falta de políticas de recuperação. “Não é, portanto, apenas nas interações cotidianas que a violência transparece. Ela permeia também as instituições sociais”, conclui a CNBB no texto-base da Campanha da Fraternidade.

 

Evangelização por uma cultura de paz

O histórico de Brasília Teimosa, onde a freira Maria Auriêta Duarte Xenofonte atua, fez ela se abraçar com a causa da Pastoral Carcerária. “Meninos e meninas da comunidade iam parar nas unidades da Funase, por algum problema, e nós íamos visitar”, recorda. Eles eram ligados à Turma do Flau, projeto iniciado como forma de melhorar a renda de famílias pobres do rádio e que teve a venda de picolé de saquinho como primeira iniciativa. Isso na primeira metade da década de 1980.


São mais de 30 anos de visitas às unidades prisionais do estado. Aos 79 anos, a Irmã Auriêta, como é conhecida, alerta que ingressar na pastoral é tarefa árdua. Exige ficar perto dos “invibilizados pela sociedade”, o que não rende fama, mas sofrimento e olhares preconceituosos. Algo que, segundo ela, condiz com a realidade dos presos. “Com a política de encarceramento em massa do Brasil, as unidades prisionais pouco ou nada de bom oferecem. Então, resta o direito a sofrer, o único que, pela minha experiência, é garantido aos homens e às mulheres presas”.

E quando se sofre, frisa o advogado José Valdemiro da Cruz, também integrante da pastoral, toda ajuda é bem-vinda. Pode ser uma fala de conforto ou documento que acelere seus processos no Judiciário.
Ao pisar nas unidades prisionais, a preocupação de Irmã Auriêta está na evangelização. Ora-se antes entrar e depois, desta vez com os encarcerados. As conversas são fundamentadas em textos bíblicos, mas os olhos ligados ao quadro sombrio de celas apinhadas de gente, de corredores-casas. “Dizemos que o projeto de Deus para eles é outro e a que a situação deles, sem abrigo e comida decente, é vontade do estado”, afirmou.

O poder público, na concepção da freira, relegou historicamente a política prisional no campo das prioridades, levando à superlotação das unidades e ao abandono daqueles que algum dia cometeram um crime. Abandonados, complementou a fundadora da Turma do Flau, os presos entram em um estado de ociosidade que tortura e não oferece horizontes de reeducação.
“Cursos, escolas de qualidade deveriam estar funcionamento nos cárceres”, defende, com o mesmo tom de fala – forte e rápido – que se apega às esperanças das aulas e das oficinas desenvolvidas na sede da Turma do Flau.

 

História

1986: Realização da primeira reunião nacional da Pastoral Carcerária.

1988: Criada a coordenação nacional da Pastoral Carcerária, iniciando-se
articulações com instituições nacionais e internacionais.

1992: A Pastoral Carcerária, pelo histórico de denúncias e contestações de
dados oficiais, se torna fonte de consulta nacional e internacional após o
Massacre de Carandiru, quando policiais mataram 111 presos durante uma
rebelião em São Paulo.

1997: A Campanha da Fraternidade, voltada
à questão dos
encarcerados e com
o lema Cristo liberta de todas as prisões estimulou o crescimento da
Pastoral Carcerária
em todo o país.

2009: O tema segurança pública da Campanha da Fraternidade foi proposto pela Pastoral Carcerária. Entre os argumentos, as rebeliões de 2006, em seis estados, causadas pela supervalorização
da política de encarceramento e não reconhecimento de direitos dos presos

2011: A Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Olinda e Recife subscreve a
denúncia, endereçada à Organização dos Estados Americanos (OEA), de que era grave a situação de risco à vida e à integridade dos detentos do
Complexo do Curado.

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