Comprar pra quê? O que pais e educadores podem fazer para frear a sedução da propaganda Organizações em todo mundo discutem as relações de consumo na família. Para especialista, a publicidade voltada ao público infantil é um danoso vilão para o orçamento doméstico

Por: Patrícia Fonseca - Diario de Pernambuco

Publicado em: 14/04/2015 16:40 Atualizado em: 16/04/2015 09:35

Eu quero a minha Caloi. Compre Batom. Eu tenho você não tem. No Dia da Criança eu quero um sapato. Quantas destas mensagens ficaram na sua cabeça desde a infância? Entidades voltadas para a promoção e a defesa dos direitos de crianças e adolescentes alertam: aparentemente inocentes, elas representam a maneira como a publicidade atinge fortemente as crianças, difundindo não apenas o consumo de chocolates, bicicletas, mas o consumismo.Para os especialistas, a explicação é simples. Se para nós, adultos, muitas vezes é difícil perceber a manipulação sutil e sedutora da propaganda, para os mais jovens, com senso crítico em desenvolvimento, torna-se praticamente impossível dizer não ao que é apresentado como sinônimo de felicidade e satisfação. Mas, o que os pais ou adultos responsáveis, podem fazer para protegê-las de uma prática distante da educação sustentável e de um ideal de sociedade que preza pelo bem-estar dos cidadãos?


Para sensibilizar, mobilizar e articular pessoas, organizações no mundo inteiro debatem o consumismo e as relações com o consumo. No Brasil, desde 2012 o Movimento Infância Livre do Consumismo (Milc) reúne cidadãos com e sem filhos comprometidos com a causa. O movimento digital tem como demanda principal a luta para que as crianças estejam livres da comunicação mercadológica."Consumo e consumismo são diferentes. Consumismo é uma ideologia ou doença que coloca o consumo como prioridade na vida. Não é à toa que as palavras que definem a sociedade na atualidade são ostentação e espetáculo. As pessoas não se diferenciam pelo que são ou fazem, mas pelo que têm. O consumo infantil é muito interessante para o mercado. Quanto mais cedo a criança for atingida, melhor. O brinquedo é apresentado com a marca. O carrinho de ferro tem uma marca e quando o menino cresce, quer comprar um de verdade. É uma vinculação de afeto indelével. Se pararmos para pensar, todos nós temos marcas que remetem a um momento especial", alerta Mariana Sá, publicitária, mãe de dois filhos, mestre em políticas públicas, cofundadora do Milc e membro da Rede Brasileira Infância e Consumo (Rebrinc), criada em junho de 2013.

Representante da Rebrinc em Pernambuco, o advogado Gustavo Andrade, membro da Associação de Defesa da Cidadania e do Consumidor (Adeccon) dedicou um capítulo à questão em sua sua tese de doutorado, recém defendida na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). O estudo "A vulnerabilidade e sua repercussão no superendividamento do consumidor" aponta a publicidade voltada para o público infantil como danoso vilão para o orçamento familiar. "Uma atmosfera de conquista, ascensão, empoderamento, é criada pelo mercado publicitário para alcançar uma categoria de consumidores que, além de influenciar diretamente o consumo das famílias, representa potencial público consumidor futuro e que terá vida longa. A publicidade dirigida às crianças e aos adolescentes age a curto e a longo prazos. Converte em curto espaço de tempo os menores em consumidores precoces de todo tipo de produtos e serviços, influenciando diretamente os hábitos de consumo da própria família e, a longo prazo, conforma seus gostos, suas crenças, seu raciocínio, seus valores e suas aspirações", defende o doutor.


A voz adulta

Para a psicanalista Patrícia Távora, mestre em psicomotricidade relacional e especialista em família, o empoderamento infantil também favoreceu a utilização das crianças como objeto do mercado. "É preciso entender a história social da criança na família. Antigamente, a criança não tinham um olhar voltado para ela. Ela não era vista como importante, não eram valorizadas suas emoções, fala, voz. Esse é o lado bom das mudanças. Hoje a criança fala dos seus desejos, tem um contato com o mundo de forma mais livre, espontânea, criativa. Mas, junto de tudo isso veio essa onda capitalista que vê a criança como uma mercadoria, a chamada adultificação e se coloca a criança num lugar de muito poder, com um excesso dessa voz: 'eu quero isso, quero aquilo', com uma família muitas vezes envolvida nesse consumismo", coloca.

A psicanalista Patrícia Távora acredita que o empoderamento infantil também favoreceu a utilização das crianças como objeto do mercado.Foto: Nando Chiapetta/ DP/ D.A.Press
A psicanalista Patrícia Távora acredita que o empoderamento infantil também favoreceu a utilização das crianças como objeto do mercado.Foto: Nando Chiapetta/ DP/ D.A.Press

Para a especialista, vale a pergunta aos pais: "O que não estou conseguindo dar a meu filho que estou compensando com bens materiais? Será que preciso mudar algo nesse educar?" Usando o choro, a birra, a criança passa a usar essa moeda de troca no cotidiano. " A criança começa a assimilar esse ter mais que o carinho, a dificuldades de aceitar simplesmente que tem que fazer o que precisa fazer, sem nada em troca. É evitar essa barganha, superar a dificuldade comportamental ou pedagógica. Não é que nunca se possa dar um presente dentro da realidade financeira da família, até por mérito ou reconhecimento do esforço, mas não deve ser a prioridade. Há casos em que a criança viaja à Disney mais de uma vez dentro do ano letivo. O recado que se passa é: a escola não é importante", alerta. Nos consultórios, diz a especialista, a questão do consumismo não surge como um sintoma. “O que aparece é uma criança muito onipotente, controloadora, com dificuldade com a frustração, que não consegue ouvir não, uma dificuldade com o diálogo, em cumprir regras, que exclui colegas".

Faça você mesmo

Na casa da jornalista e artista plástica Dani Acioli, a troca, o diálogo e o faça você mesmo são ferramentas para alimentar o anticonsumismo. No quesito vestuário, a situação foi resolvida. Um grupo de cinco amigas com filhos faz a troca de roupas e sapatos, que vão sendo repassados de acordo com as idades das crianças. "Os meninos já se acostumaram e, de verdade, nem ‘se tocam’. Nunca tentamos com brinquedos, um calo maior", reflete Dani, mãe de Theo, de 10 anos e Nuno, com quatro.

Theo, 10 anos, constrói muitos brinquedos e serve de exemplo para o irmão, Nuno, de 4, que ainda pede o que vê na TV. Foto: Paulo Paiva/ DP / D.A.Press
Theo, 10 anos, constrói muitos brinquedos e serve de exemplo para o irmão, Nuno, de 4, que ainda pede o que vê na TV. Foto: Paulo Paiva/ DP / D.A.Press

Com o mais velho, Theo, que é celíaco, a questão da publicidade infantil afetou mais fortemente no quesito alimentação. Não vamos a nenhum fast food. Publicidade por comida é uma coisa que me irrita, não só por conta da exclusão por conta do glúten. Biscoitos com personagens, brinquedos, sempre tirei de casa. Enfatizo que brinquedo não se vende dessa forma e que quando se faz muita propaganda é porque não faz bem à saude. E a gente nota como a publicidade influencia nas coisas mais simples, triviais", atesta.

Segundo a jornalista, o mais novo, Nuno, é mais influenciado pelos colegas. "Ele pede o brinquedo que vê no comercial, mas explico que a função da propaganda é fazer com que a gente compre. Até os canais de TV paga têm para cada meia hora de desenho, dez minutos de propaganda. Mostro que tudo que a gente faz é muito melhor porque a gente incrementa, enquanto os fabricantes economizam. Theo faz muitos dos seus brinquedos e isso facilita com Nuno, porque ele admira o que o irmão faz. É um facilitador. E pergunto: Se um carrinho na loja vem com 30 acessórios, você pode colocar quantos quiser no carrinho que faz pra você mesmo. Também explico que a propaganda é fantasiosa e que os brinquedos não fazem o que é mostrado na TV", aponta.

Durante a Copa do mundo, o desejo em ter a camisa oficial da seleção brasileira, que atingiu preços exorbitantes, a questão foi solucionada com a produção de uma camisa em casa, com uma leitura pessoal. "Você tem que se dispor. É cansativo, mas é um investimento que você faz na educação. Acho que não é a escola que tem que educar. Quem educa é a educação doméstica. E não é só na televisão, na internet, devemos evitar ir a shoppings. Quando você sai na rua a publicidade popular vai direto na criança. Quando a gente sai do teatro o vendedor não oferece os produtos aos pais, mas às crianças, querem que elas gritem, esperneiem. É sair e não ter que voltar com nada na mão. Fazer o combinado ainda em casa e também a educação monetária. A gente mostra que tudo tem um custo: médico, colégio, roupa, natação. A linguagem com cada um é diferente", acrescenta.



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