Diario de Pernambuco
Busca
Opinião Raimundo Carrero : Gerúndio sem tempo e sem força deixa a frase sem qualidade Raimundo Carrero é escritor e jornalista

Publicado em: 29/05/2017 07:44 Atualizado em:

Recebo e-mail de leitor inconformado %u2013 deixo de citar o nome porque não tenho autorização - com a reflexão que fiz aqui sobre o uso do gerúndio no começo da frase. Ele não se conforma e diz que a frase %u201CLevando a mão ao queixo disse: raios me partam%u201D está correta e deve ser assim. Desculpe mas há vários erros %u2013 primeiro porque ninguém diz uma expressão tão forte %u2013 %u201Craios me partam%u201D %u2013 com a tranquilidade do gerúndio lerdo e lento, com a mão no queixo. Isso mesmo; o gerúndio sem tempo, sem força, sem qualidade.; o gerúndio é sem, sem, sem. No início torna a frase lenta, preguiçosa, sem força, descamba lentamente para o abismo até sumir. E não combina, em absoluto, com a segunda frase, que pede um certo vigor, e aponta para um gestual mais denso. Há uma distância visível de tom e de ritmo. Elementos essenciais para a narrativa. Escreve-se como quem compõe, como quem canta. Mais ainda: John Gardner chama a atenção para a impossibilidade da cena numa frase tão fraca. Pessoalmente, gosto do gerúndio no fim da frase que não é nem tempo verbal, é forma nominal. Diferente do imperfeito que, mesmo imperfeito, tem uma forte participação narrativa.

No começo, dá a impressão de uma frase que não se sustenta em pé e que vai caindo, vai caindo, vai caindo. Tenta se recompor e quando chega à frase forte, já não tem mais densidade. O que não acontece, por exemplo, com o imperfeito. Cujo tempo narrativo é bastante elástico. Alguns gramáticos julgam o imperfeito porque não tem começo nem fim, daí a imperfeição, não tem um tempo. Ex. caminhava, quando começa e quando termina? Para Proust, quem melhor usou o imperfeito foi Flaubert. Na novela Um coração simples, Flaubert escreve que a empregada Félicité %u201Clavava, cozinhava e passava%u201D por 200 francos anuais. O que significa dizer que era explorada e escravizada. Conquista narrativa notável: Félicité não parava nunca. Fica estabelecida aí, a verdadeira criação literária. Técnica e sutileza.

Veja agora o que acontece com Dalton Trevisan. Na primeira edição do livro 20 contos menores, aparece um gerúndio %u2013 escorregando %u2013 na terceira frase do conto Uma vela para Dario. A frase: %u201CPor ela escorregando, senta-se o chão%u201D. Na internet, o autor substitui o gerúndio pelo presente do indicativo %u2013 escorrega -, e a frase fica assim: %u201CPor ela, escorrega, senta-se no chão.%u201D É preciso cuidado e atenção. Claro que o autor pode escrever do jeito que quiser. Ou, como se diz, do seu jeito. Mas não é assim. Escrever de qualquer jeito qualquer um escreve. E nem percebe a falta de qualidade. Em geral, deixamos para os poetas a arte de escrever bem. Por isso, mesmo, os prosadores precisam ler os poetas cada vez mais.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL