Manchetes do Diario já combateram e apoiaram o autoritarismo no Brasil
O Diario de Pernambuco foi alvo de censura em momentos diversos de seus 200 anos de história, e chegou a ter sua circulação impedida
Publicado: 07/11/2025 às 00:07
Regimento de Infantaria deixa o Palacio do Campo das Princesas, meses após se investir no Governo, o ex-governador Miguel Arraes. Aqui em companhia do sr. Valdir Ximenes e de um oficial do Exercito ( ARQUIVO/DP)
“FORÇAS MILITARES DE MINAS REBELAM-SE CONTRA JOÃO GOULART E OS COMUNISTAS”. Esta foi a manchete do Diario de Pernambuco no dia 1º de abril de 1964, narrando os eventos que levariam, naquele mesmo dia, à deposição do então presidente da República, João Goulart – o “Jango” –, em Brasília, e do ex-governador Miguel Arraes, no Recife.
Nas páginas do Diario, antes de qualquer ação da censura que aconteceria nos anos seguintes, o golpe militar foi noticiado com subtextos de heroísmo, como uma “revolução”.
O apoio do periódico ao regime instaurado em 1964 está escancarado nas letras garrafais de todas as publicações que antecedem e sucedem os acontecimentos de 31 de março. O doutor em História do Norte e Nordeste do Brasil Helder Remígio, professor do curso de História da Universidade Católica de Pernambuco, explica que essa linha editorial conservadora não era exclusiva do Diario, mas um reflexo na dos interesses das elites na grande mídia.
“Naquele momento, o Diario tinha uma posição muito próxima da UDN [partido de oposição à Jango] e das forças que atuavam no campo político em oposição ao trabalhismo, que é uma herança de Getúlio Vargas e teve continuidade com João Goulart”, conta Remígio.
“O Diario apoia o golpe, assim como vários outros jornais, e reproduz o discurso dos militares de que o golpe era em defesa da democracia contra o comunismo”, acrescentou.
As capas das edições publicadas nos dias que antecedem o golpe até 1º de abril trazem uma diversidade de exemplos das narrativas militares reproduzidas da imprensa, como apontado por Remígio, que incitavam a polarização e a ‘ameaça do comunismo’, e criticavam a gestão de João Goulart, a exemplo dos títulos: “JANGO PREFERIU A INDISCIPLINA CONTRA A ORDEM”, “LACERDA: JG ALIOU-SE AO PCB CONTRA AS ELEIÇÕES”, “COMBATE ESPERADO A QUALQUER MOMENTO” e “KRUEL: EXÉRCITO CONTRA OS COMUNISTAS”.
Nos dias que seguiram, o Diario trouxe títulos que celebravam a intervenção. “RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS MANTIDAS: BRASIL-EUA”, “RENDEU-SE O ÚLTIMO FOCO REBELDE: BRIZOLA FUGIU” e “MEIO MILHÃO DE CARIOCAS NO CARNAVAL DA VITÓRIA” são exemplos.
A deposição de Arraes, que passou apenas 14 meses à frente do Executivo estadual, também foi apoiada pelo Diario. Coerente com seu histórico posicionamento aliado aos usineiros em Pernambuco, o jornal já fazia oposição à gestão do ex-governador. Arraes era considerado uma figura subversiva pelos militares, apesar de não ser comunista, pela sua relação com os sindicatos e as ligas camponesas. Ele se negou a renunciar ao cargo e foi preso pela ditadura – a foto de sua saída do Palácio do Campo das Princesas ilustra a capa de 2 de abril de 1964.
Este jornal acompanhou com bons olhos os primeiros anos do regime militar, assim como o governo de Paulo Guerra, ex-vice de Arraes alçado à titularidade. Generais, especialmente os pernambucanos, como o comandante do IV Exército, Justino Alves Bastos, passaram a ter destaque nas páginas do periódico, enquanto figuras da sociedade pernambucana críticas da ditadura começaram a ser escanteadas pela reportagem, à exemplo do então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Câmara.
Remígio aponta, no entanto, que a linha editorial foi ficando menos ideológica até o final dos anos 1960. “O Diario passa a adotar um tom mais informativo, menos ideológico, ao longo da ditadura, mas continua atuando muito próximo das forças conservadoras”, esclarece.
Diario sob censura
A relação do Diario com o governo militar mudou, de fato, em 1968, com o Ato Institucional nº 5, que concedeu ao presidente – à época, Costa e Silva – os poderes de fechar o Congresso Federal, suspender direitos individuais e garantias constitucionais, intervir diretamente nos governos estaduais e municipais, além da censura prévia da arte e dos veículos de comunicação, entre outras violações que resultaram na escalada da repressão violenta pelo Estado.
Segundo Remígio, toda a imprensa pernambucana sofreu com a censura decorrente do AI-5. “Censores do Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) já se instalavam nas redações dos jornais. Existia um índice de assuntos proibidos. Os jornalistas não podiam tocar naquele tema”, disse o historiador.
Uma das palavras censuradas na imprensa, conta Remígio, era “fome”. “A palavra ‘fome’ foi proibida de ser redigida, de ser demonstrada. Era como se a ditadura tentasse acabar com a fome no Brasil através da censura. Esse é um ponto relevante. Isso não só nos jornais, mas também na televisão, no rádio”, afirmou.
Foi já sob a vigilância do DOI-CODI que o Diario cobriu a morte do padre Henrique, auxiliar de Dom Helder que, aos 28 anos, foi brutalmente assassinado na Cidade Universitária, no Recife, em 1969. Inicialmente noticiado em nota convidando para o sepultamento no Colégio Marista, o caso recebeu uma ampla cobertura policial com o andamento das investigações.
As motivações políticas por trás do crime, entretanto, foram prontamente afastadas pela imprensa e pela Secretaria de Estado e Segurança Pública do Estado (SSP-PE), ganhando espaço nas páginas do jornal apenas quando levantadas pela família do sacerdote. A versão oficial da época é que padre Henrique foi morto por uma gangue devido ao seu trabalho para reabilitar “viciados”, como foram chamados os dependentes químicos por este jornal em 1969.
Foi apenas com a Comissão da Verdade que se descobriram os autores do assassinato, um grupo ligado ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) que envolvia o próprio diretor de investigações da SSP-PE. O historiador Helder Remígio explica que há evidências para se afirmar que Henrique foi morto para atingir Dom Helder Câmara.
“Dom Helder era um defensor dos direitos humanos, passou a ser chamado pelos opositores de ‘bispo vermelho’. E ele começa a articular, até internacionalmente, denúncias em torno dos abusos que a ditadura cometia. Ele evitou uma catástrofe, quando impediu os militares de invadir a Universidade Católica numa greve de alunos e funcionários. E ele sofre um duro golpe quando o padre Henrique, que era seu assessor direto, é assassinado”, explicou.
Remígio avalia a cobertura policial do caso como ‘discreta’, e relembra que os jornais chegaram a publicar boatos sobre supostas condutas sexuais do padre Henrique numa tentativa de descredibilizá-lo. “Quando a imprensa cobria, procurava silenciar a morte, pormenorizar e, inclusive, descredenciar o padre”.
Com a repressão crescente nas redações, o Diario sequer acompanhou a morte de figuras como o jornalista Vladimir Herzog, que só teve seu assassinato considerado pelo jornal pernambucano em uma única edição de 1975, em um opinativo de Clovis Stenzel.
CRÍTICAS AO REGIME
Diante da distensão do regime militar ao final dos anos 1970, a repercussão internacional das torturas e mortes da ditadura e o afrouxamento da censura, Remígio avalia que o Diario toma uma posição mais crítica, acompanhando as ânsias da sociedade civil. Continua, no entanto, alinhado às elites e buscando informar sem “politizar” os movimentos pela democracia, como foi o caso das Diretas Já.
O retorno do ex-governador Miguel Arraes de seu exílio na Argélia, em 1979, ganhou uma ampla cobertura do Diario. As manchetes mantinham um tom informativo, sem partidarizar as manifestações – “ARRAES CHEGA HOJE AO RECIFE” e “ARRAES FALA EM TOM MODERADO PARA 50 MIL” são exemplos. A leitura aprofundada das edições revela, no entanto, alfinetadas ao ex-gestor e seu grupo político: “MACIEL VÊ ARRAES FORA DA REALIDADE”, “NO COMITÊ, REINA DESORGANIZAÇÃO”, “UMA RECEPÇÃO DISPENDIOSA” e “GOVERNO ARRAES: 14 MESES DE CONTURBAÇÃO”.
Ao final da ditadura em 1985, com as primeiras eleições para o governo de Pernambuco, o Diario se alinha ao candidato da direita, José Múcio Monteiro, fazendo oposição a Miguel Arraes, que se elegeu. “O Diario continua como um jornal ligado às elites pernambucanas e com um projeto que, de algum modo, mantém uma linha editorial que acompanha o que aconteceu durante a ditadura, de manter o status quo das elites locais”, analisa Remígio.
O então governador, entretanto, busca se aproximar da imprensa, e ganha uma cobertura mais simpática do periódico ao longo de seu governo. Remígio avalia, inclusive, que a imprensa foi vital para conter crises na gestão.
“Arraes vai enfrentar muitos problemas, mas já começa a trazer a imprensa para o lado dele.
O Diario de Pernambuco acaba fazendo mais um trabalho de adesão ao governo, como já fez em outros momentos históricos. Arraes vai enfrentar uma dura greve de professores, e naquele momento percebemos que uma parte significativa da imprensa estava dando apoio ao governo”, afirmou.
Empastelamento e morte de Demócrito
Apesar da censura, o Diario não deixou de circular durante a ditadura militar. A impressão do periódico só foi impedida duas vezes em seus 200 anos de história, em momentos distintos de cerceamento da liberdade de imprensa. O primeiro empastelamento – como ficou conhecido o ato de silenciar violentamente um jornal – foi em 1911, quando foi paralisado por dois anos.
À época, a redação do jornal foi invadida e destruída a mando do general Dantas Barreto, que era candidato ao governo contra o proprietário do Diario na época, Francisco de Assis Rosa e Silva. A primeira intervenção do general, ex-ministro de Guerra, empastelou o impresso por 14 dias em 1911. Retornou em novembro, para ter suas portas fechadas novamente até janeiro do ano seguinte, sob a direção do chefe de polícia Elpídio de Figueiredo.
"“O Diario vai sofrer bastante durante a Era Vargas. A imprensa foi extremamente marcada pelo DIP". Helder Remígio, historiador
Com a vitória de Dantas Barreto nas eleições, o Diario assumiu a oposição, o que rendeu o empastelamento até 1913, quando foi comprado pelo coronel Carlos Benigno Pereira de Lira, explicitamente desinteressado em política nos jornais. “Estamos na maior imparcialidade para encarar os fatos que se desenrolam em nosso meio, quer em relação à política geral do país, quer na do estado”, escreve a primeira edição sob a nova gerência.
O segundo silenciamento sofrido pelo Diario ocorreu em 3 de março de 1945, quando os agentes do Estado Novo de Getúlio Vargas pararam as máquinas do impresso para evitar publicações sobre a morte do estudante Demócrito de Souza Filho, assinado com um tiro na cabeça dentro do prédio do Diario, no Recife, enquanto aguardava um pronunciamento do sociólogo Gilberto Freyre durante uma manifestação.
“CONTINUAREMOS A DENUNCIAR OS CRIMINOSOS À NAÇÃO ATÉ QUE A JUSTIÇA OS ARRASTE PARA O BANCO DE RÉUS”, diz a manchete do Diario em 9 de abril de 1945, 37 dias depois do ocorrido, quando a redação foi desocupada pelos militares. O impedimento foi a alternativa encontrada pelo jornal para não se submeter à censura de Vargas.
“O Diario vai sofrer bastante durante a Era Vargas. A imprensa foi extremamente marcada pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), que atuava na censura de conteúdos mais críticos ao Estado Novo. Era um clima de ufanismo, sendo um período de muita censura aqui em Pernambuco. O DIP controlava e censurava qualquer material que fosse publicado nos jornais e que pudesse, de algum modo, prejudicar a imagem do governo”, explicou Remígio.