Parlamento de Pernambuco e seus quase dois séculos de poder, leis e crises institucionais
Da regulação escravista às cotas reparadoras, a Assembleia Legislativa (Alepe) é o espelho das transformações sociais, fiscais e democráticas que moldaram o estado de Pernambuco
Publicado: 07/11/2025 às 00:05
Palácio Joaquim Nabuco foi sede da Alepe até 2017 (ARQUIVO DP)
O Palácio Joaquim Nabuco, que se mantém erguido com a sobriedade de seus quase dois séculos de história no centro do Recife, não é apenas a casa que abrigou, por 142 anos, a sede do Poder Legislativo de Pernambuco; é um compêndio físico e documental da própria jornada de autonomia e centralização do estado.
Desde sua instalação formal em 1º de abril de 1835, que vai até 1837, como Assembleia Legislativa da Província de Pernambuco, quando 11 dos 36 deputados eram padres, o parlamento estadual assumiu um papel central na definição do pacto social, econômico e jurídico que regeu a vida dos pernambucanos. A então “Assembleia da Província” primeiro funcionou no Forte do Matos, no Bairro do Recife, do qual não existem mais registros.
Inicialmente, o antigo prédio era conhecido como "Paço da Assembleia Legislativa de Pernambuco" e recebeu um novo nome para prestar homenagem ao político que lutou pela abolição, nascido no Recife, em 1849. Sua história, marcada por períodos de intensa produção legal e momentos de profundo silêncio democrático, revela o impacto direto de suas decisões, que variaram de leis que cimentaram a exclusão a políticas contemporâneas de reparação.
O estudo das leis da Alepe exige uma perspectiva histórica que reconheça os momentos de fundação, expansão e supressão de sua capacidade normativa. A longevidade da Casa, celebrando 190 anos de atuação, lhe faz uma das instituições legislativas mais antigas do país; um vetor de poder que se confunde com as crises e as conquistas do povo de Pernambuco.
OS PRIMÓRDIOS
A gênese do Poder Legislativo em Pernambuco está firmada no período imperial, um reflexo da institucionalização da autonomia provincial após a promulgação do Ato Adicional de 1834. A primeira geração de parlamentares era um retrato fiel da estrutura de poder da época. Segundo o acervo histórico da própria Alepe, os primeiros legisladores eram figuras proeminentes das elites agrária, política e eclesiástica da época.
Embora o número exato de parlamentares padres e suas outras ocupações variasse a cada legislatura provincial, a presença do clero e da intelectualidade jurídica era notória. A Igreja, como instituição de forte influência social e moral, via no púlpito da Assembleia um espaço legítimo para defender os interesses de sua classe.
A primeira sede da Casa Legislativa não se fixou imediatamente no atual endereço. Ao longo do século 19, a Assembleia Provincial funcionou em diferentes locais da capital, quando finalmente estabeleceu seu endereço definitivo no Palácio Joaquim Nabuco e, a partir de agosto de 2017, passou a ser no Edifício Governador Miguel Arraes de Alencar, localizado na Rua da União, por trás do Palácio.
A legislação criada pela Assembleia Provincial serviu predominantemente para gerir o território sob a égide do sistema escravista, já que a própria Assembleia Provincial esteve ativamente envolvida nas discussões e regulamentações relacionadas desse sistema. Após a Lei do Ventre Livre (1871), as leis de transição criadas não pavimentaram a plena cidadania, mas criaram "novos vínculos de dependência", consolidando a chamada "abolição inacabada" em Pernambuco.
A Lei nº517/1861 proíbe “danças dos pretos escravos ou Maracatu, pelas ruas e praças desta cidade”. O texto inclui, no artigo 108, as punições de 24 horas de prisão aos infratores e de duas dúzias de “palmatoadas” às pessoas escravizadas que descumprissem a determinação. A produção legal inicial da Casa, portanto, teve um impacto de dupla face: consolidou a autonomia provincial, mas o fez por meio de um sistema de leis que era, em sua essência, excludente e centralizado na defesa dos interesses da elite branca proprietária.
LEIS ESTRUTURANTES
Ao longo de sua existência, o poder da Alepe se manifestou na criação de instrumentos legais que redefiniram a economia e a administração do estado. Entre as principais leis criadas, algumas se destacam por seu impacto estrutural e duradouro no cotidiano e no futuro econômico dos pernambucanos.
Um marco fundamental é o Programa de Desenvolvimento do Estado de Pernambuco (Prodepe), instituído pela Lei nº 11.675/1999. É mais do que um incentivo fiscal, é uma estratégia de geopolítica interna articulada pelo Poder Legislativo. O impacto desta lei está na chance de combater a concentração econômica na Região Metropolitana do Recife (RMR). Ao aprovar créditos presumidos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) com percentuais significativamente maiores para empresas instaladas no Sertão (até 95%) e no Agreste (até 90%), a Alepe atuou como um agente de interiorização do capital, gerando emprego e renda Pernambuco adentro.
Contudo, a atuação da Alepe é permanentemente desafiada pela rigidez do processo legislativo. Muitas iniciativas populares ou parlamentares são barradas pelo vício de iniciativa, um mecanismo constitucional reservado a matérias de grande impacto fiscal, como a criação de cargos ou o aumento de despesa, competências privativas do Governador do estado. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) frequentemente invalida normas estaduais que invadem essa competência, como o STF já fez, por exemplo, ao invalidar uma norma que permitia a eleição antecipada para a Mesa Diretora da Assembleia (ADI 7751), demonstrando o limite constitucional da autonomia do Poder Legislativo diante do Executivo.
RESISTÊNCIA
A jornada da Alepe não foi um caminho contínuo de produção democrática. A Casa atravessou períodos de suspensão e intervenção que revelam sua fragilidade diante do poder centralizador.
O golpe mais significativo à soberania do parlamento pernambucano ocorreu durante o Regime Militar. O Ato Complementar nº 47, de 7 de fevereiro de 1969, decreta o recesso de todas as Assembleias Legislativas estaduais no Brasil. A suspensão formal da representação democrática perdurou por mais de um ano, com o Palácio Joaquim Nabuco reabrindo apenas em 1º de junho de 1970. Neste período, a produção legal foi ditada e instrumentalizada para servir aos interesses do governo federal e do Executivo Estadual nomeado. A Alepe foi, assim, reduzida a um órgão de homologação, e não de formulação. O impacto desse recesso foi a interrupção da voz popular e a supressão do debate, com as leis emanando de um centro de poder não eleito.
Outros momentos históricos, como a fase do Estado Novo (1937-1945), também impuseram severas restrições à autonomia estadual, limitando a capacidade normativa da Assembleia e centralizando o poder no interventor federal.
A retomada do pleno exercício do mandato ocorreu com a redemocratização e a promulgação da Constituição Estadual de 1989. Este novo arcabouço legal conferiu à Alepe uma maior capacidade de fiscalização e autonomia regimental, mas a Casa teve que se readequar ao complexo sistema de federalismo fiscal, que, muitas vezes, limita as grandes inovações legislativas por questões orçamentárias.
CADEIRAS EM MUTAÇÃO
Se a estrutura física do Palácio Joaquim Nabuco permaneceu a mesma, a composição humana das cadeiras mudou drasticamente. A representatividade na Alepe acompanha as lentas, mas profundas transformações na sociedade de Pernambuco.
No início, a ocupação das cadeiras era quase que integralmente reservada aos homens brancos das elites agrária e intelectual. A participação feminina e da população negra era inexistente. A primeira mulher a ser eleita deputada estadual em Pernambuco, por exemplo, só ocuparia a cadeira décadas após a fundação da Casa, marcando uma lenta e gradual mudança do cenário legislativo do estado. Nos anos mais recentes, a Lei Eleitoral e as pressões dos movimentos sociais impulsionaram a entrada de mulheres e o aumento na visibilidade da população negra.
A mudança na composição não é apenas um dado estatístico; ela impacta diretamente a agenda legislativa. A Casa que outrora legislou sob o regime escravista, hoje é a que aprova as políticas de reparação histórica.
O marco dessa transição é a promulgação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei N° 18.202/2023). Esta legislação, aprovada no parlamento estadual, reconhece formalmente o racismo institucional e estabelece ações afirmativas para combater o legado da desigualdade social e étnico-racial.
Como resultado direto dessa nova configuração e agenda, a Alepe aprovou a lei que instituiu as Cotas Raciais em Concursos Públicos Estaduais. O Projeto de Lei (PL 464/2023) reserva 30% das vagas para pessoas negras, pardas, quilombolas e indígenas, uma medida que busca corrigir a sub-representação histórica no serviço público. Essa aprovação demonstra que a ocupação das cadeiras por grupos sub-representados tem o impacto direto de reescrever o pacto social do estado, forçando o parlamento a confrontar o débito histórico.
CRISE E FISCALIZAÇÃO
O papel da Alepe como fiscalizadora do Poder Executivo é um dos mais cruciais para a vitalidade democrática. Neste campo, a relação institucional com a imprensa, em particular com o Diario de Pernambuco (DP), torna-se essencial.
O Diario de Pernambuco, que precedeu a fundação da Assembleia em uma década (1825), atua como um repositório primário e um barômetro das tensões políticas no estado. O jornalismo acompanha e divulga as denúncias mais graves que ecoam na tribuna da Casa, atuando como amplificador do Poder Legislativo.
O reconhecimento dessa relação bicentenária é tão profundo que a própria Alepe concedeu parecer favorável para que o acervo jornalístico do DP fosse oficializado como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado, protegendo o registro das crises e das votações da Casa.
A função fiscalizadora se materializa em momentos de crise, como a instauração de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). A Alepe tem sido o palco para a investigação de denúncias de má-gestão e desvios, como a instauração da CPI para apurar gastos com publicidade no Governo do Estado.
A Alepe, portanto, é um organismo em constante evolução, que carrega as cicatrizes de sua fundação imperial e os avanços de sua vocação democrática. O impacto de sua atuação é inegável: ela criou as regras do jogo econômico (Prodepe), atravessou ditaduras para defender a representação popular e, hoje, lidera a agenda de inclusão e reparação racial. Ao longo dos anos, a Alepe evoluiu de um fórum de elites para um espaço de debate plural, guiando os pernambucanos em uma contínua jornada rumo à construção de uma sociedade mais justa e transparente.