Extra, Extra! Um jornaleiro contra um mundo de esquecimentos reencontra o Diario após quase 50 anos
Francisco Araújo, ex-entregador do Diario, testemunhou cotidiano ao distribuir os jornais pelo Recife
Publicado: 15/12/2025 às 07:00
Francisco Araújo reencontra jornais que distribuiu nos anos1970, no arquivo do Diario (Crisly Viana/DP Foto)
Esquecendo-se do sol de quase meio-dia, do peso da bolsinha com três marmitas para as filhas e dos 80 anos incompletos sobre as pernas, Francisco Araújo encara atentamente a sede do Diario de Pernambuco, no Centro do Recife. Ele acaba de chegar ao local, após almoçar em um restaurante popular nas redondezas, e intercepta alguns funcionários na calçada: “fui entregador do jornal”, apresenta-se orgulhosamente.
Francisco deseja que alguém lhe responda o porquê de o jornal ter “ficado tão grande”. A resposta é coisa para conversa longa, motivo pelo qual esta repórter o convida para entrar e puxar uma cadeira. Com a elegância de outros tempos, o senhorzinho atarracado realinha o chapéu no modelo newsboy (que coincidentemente significa “jornaleiro”, em inglês) e topa a conversa.
Ele nasceu no dia 18 de maio de 1946, em Maceió, capital de Alagoas, e mudou-se para o Recife ainda na infância, após perder a mãe precocemente. “Fui criado por minhas irmãs. Morava em Peixinhos [Olinda] quando um amigo do bairro me chamou para trabalhar no jornal. Era um bico, um extra”, lembra.
Francisco se atrapalha quando é questionado acerca da data de início de suas atividades no jornal. E quando a memória o trai desta forma, a voz rouca vai rareando e os olhos miúdos se espremem num esforço contra o próprio corpo. Como se estar fora da precisão das notícias, ainda hoje, o deixasse desconfortável.
"Eu sei que foi nos começo dos anos 1970, quando eu tinha uns 30 anos. A rotina era difícil, o fardo de jornal é pesado e a gente acordava muito cedo para trabalhar”, vai dizendo.
Da correria nas ruas, Francisco sente falta da camaradagem com os colegas de trabalho e das amizades que fazia pela cidade. “Aprendi a me comunicar. A gente tinha que falar com todo tipo de gente para entregar os jornais”, lembra.
Recebido no Centro de Documentação (Cedoc) do Diario, o jornaleiro reencontra, pela primeira vez, alguns exemplares históricos que distribuiu pelas ruas. Com a ponta do dedo indicador, lê atentamente cada linha da matéria “Perna Fantasma surge em moradia em Tiúma”, assinada pelo jornalista Raimundo Carreiro em 10 de dezembro de 1975, que noticiava pela primeira vez uma das mais célebres lendas urbanas do Recife.
A edição histórica foi lembrada no filme O Agente Secreto, do pernambucano Kléber Mendonça Filho, em cena que retrata o esforço dos entregadores do Diario para distribuir os folhetins ao público. “Me lembro de entregar os jornais com a capa da cheia de 1975, porque também fui um flagelado das enchentes. Eu e minha família perdemos tudo”, lamenta.
O jornaleiro, no entanto, demonstra maior interesse pelo noticiário esportivo. Pelo longo corredor de gavetas do arquivo, se demora alguns instantes diante dos documentos esportivos. Em tudo que o interessa, faz questão de deslizar calmamente as mãos, com o carinho de quem criou jeito para dar boas ou más notícias.
“Eu tenho, dentro de mim, muita sede de aprender alguma coisa”, dispara Francisco, que não sabe informar se concluiu o ensino fundamental. “Eu acho a profissão de jornalista muito bonita, porque vocês têm que saber de tudo um pouco e não podem mentir. É muito difícil ser jornalista”, continua.
Francisco deixou o jornal no final da década de 1970, para trabalhar como faxineiro. Depois, foi vigilante de uma escola. Hoje, vive com a esposa e as enteadas, que vão precisar ler esta matéria para entender o porquê de terem recebido suas marmitas resfriadas.
A primeira entrega atrasada de Francisco, contudo, pouco importa. Extra, Extra! Desta vez, ele é a matéria do jornal.