Realismo mágico para driblar a censura
O surgimento da história da Perna Cabeluda nas páginas do Diario ajudou a denunciar a violência doméstica
Publicado: 07/11/2025 às 02:35
Raimundo Carrero (Marina Torres/DP Foto)
O rapaz tinha hematomas nos olhos, escoriações pelo corpo e semblante desesperado, lembra Raimundo Carrero. Estamos em agosto de 1975, na turbulenta redação do Diario de Pernambuco da Praça da Independência, no Centro do Recife, e ele é o repórter de Polícia encarregado de tomar nota de um insólito depoimento.
Um morador de São Lourenço da Mata, sabe-se lá como, invadiu a sede do jornal para relatar como e quando fora brutalmente atacado por uma fantasmagórica perna cabeluda.
“Cheguei em casa e encontrei uma perna cabeluda do lado da minha mulher. Foi o momento mais triste da minha vida”, começou o homem. O repórter retrucou: “perguntei logo pelo resto do corpo. ‘E tua mulher se realiza só com uma perna?”.
“Ao cruzar a soleira da porta, a perna correu, pulou e se lançou em um chute violento contra a cabeça do homem. Em vão, a vítima correu para o quarto, onde a surra continuou. A desdita só teve fim quando o homem chegou à via pública e a perna o puniu com o último constrangimento de desaparecer justamente na frente dos transeuntes”.
Em tempos de silenciamento dos fatos e da realidade social, o fantástico encontrou espaço livre para aterrorizar o inconsciente coletivo nas páginas policiais. “Na época, a ditadura tinha proibido o jornal de publicar críticas ao regime e todos os casos de violência contra a mulher. Um censor, Alexandre, ficava circulando na redação perguntando sobre o que estávamos escrevendo”, destaca Carrero.
A máscula, cabeluda e implacável perna era o fantástico grotesco de uma realidade mutilada pela censura. “A maior parte das histórias que começaram a circular na cidade sobre a perna cabeluda, envolviam casos de violência contra a mulher. Os jornalistas eram muito pressionados na época, é claro que a gente tinha medo”, afirma Carrero.
Cobertura
Irritado com os abusos praticados pela ditadura contra a redação, o editor de Justiça e, hoje, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Og Fernandes, sugeriu que o jornal criasse o quadro "Romance Policial”, com a ideia de incluir os casos fantásticos no noticiário.
O projeto passou a circular no tabloide de domingo, uma edição que reunia reportagens especiais e temáticas, além de textos de ficção.
À época, a autoria da Perna Cabeluda já era dividida com o conhecido radialista Jota Ferreira, que também acompanhava os casos. No Diario, a primeira matéria sobre a hirsuta assombração foi veiculada no dia 10 de dezembro de 1975, com o título “Perna fantasma surge em moradia em Tiúma”.
“SÃO LOURENÇO - Provoca rebuliço neste município a notícia de que uma residência situada em Tiúma está recebendo imagens espíritas em suas paredes e, com isso, atraindo centenas de pessoas que vão ver 'as visagens'", introduz a matéria.
De acordo com o texto, o fenômeno teria sido observado pela primeira vez 13 dias antes, na casa de número 13 da Rua da Amendoim, em Tiúma, por um garoto identificado apenas como “Wanderley”. As aparições teriam motivado visitas de um pastor, um padre e de um grupo de espíritas ao local. “Deste ou de outro mundo, o fato é que a imagem da perna aparece, e isso vem deixando impacientes os moradores das redondezas", diz o texto.
Não demorou para que os relatos de avistamentos da perna se multiplicassem na Região Metropolitana do Recife. “A verdade é que, em muitos casos, envolviam maridos que encontravam as esposas com outros homens, o que não justificaria espancá-las, é claro. As vítimas que não podiam dizer que tinham apanhado do marido, falavam que era a perna cabeluda”, reforça Carrero.
O primeiro texto assinado pelo jornalista sobre o suposto fenômeno foi publicado no dia 1º de fevereiro de 1976. “Os gritos de uma mulher foram escutados, misturados com uma pancadaria, voz de homem furioso berrando. De repente, a mulher foi atirada na rua, bateu com a testa no chão, quebrou a cabeça”, diz o jornal.
Em um jornal diário, Carrero construía uma narrativa literária capaz de confrontar a censura a notícias relacionadas a violência contra a mulher. “O homem [...] foi logo contando: chegara em casa cansado, louco para dormir, e quando entrou no quarto, o que viu? Ao lado da mulher, estava deitada a perna cabeluda, morrendo de rir. Perdeu a paciência, puxou a mulher pelos cabelos, esfregou-a na parede”, segue o artigo.
Com forte influência do realismo mágico que imortalizou o colombiano Gabriel García Márquez, o jornalista também escreveu sobre outras assombrações urbanas nas páginas do Diario.
O Cachimbo Eterno, por exemplo, faria suas aparições em áreas suburbanas da cidade, sempre bem vestido e portando seu cachimbo. “Esse personagem era acusado de enganar mulheres. É realismo mágico porque se realiza a partir do real para o fantástico”, explica Carrero.
Cultura popular
Em 1976, o Diario já noticiava o sucesso da Perna Cabeluda no carnaval de Pernambuco. A figura virou cordel, música e até troça carnavalesca. “Vou dizer uma coisa horrível: a cultura brasileira em relação ao chamado ‘corno’ é muito ampla e, de qualquer maneira, provoca risada”, brinca Carrero.
Em outubro de 2025, transeuntes que circulavam pelo Marco Zero, no Bairro do Recife, foram surpreendidos pela presença de uma escultura de oito metros de altura da Perna Cabeluda. A estrutura fazia parte da divulgação do filme pernambucano 'Recife Assombrado 2: A Maldição de Branca Dias', do diretor Adriano Portela, que chegou no mesmo mês em todos os cinemas do Brasil.
Ela também figura no filme O Agente Secreto, de Kléber Mendonça Filho. Em maio, a equipe da produção levou um molde da perna para o Festival de Cannes, na França, onde o filme foi exibido.