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Em processo de tombamento, painel de Lula Cardoso Ayres padece em lava-jato no Centro do Recife

Painel "A indústria", de Lula Cardoso Ayres, aguarda tombamento desde 2019

Marília Parente

Publicado: 29/10/2025 às 04:00

Motos estacionadas abaixo do painel desenhado por Lula Cardoso Ayres/Marília Parente/DP

Motos estacionadas abaixo do painel desenhado por Lula Cardoso Ayres (Marília Parente/DP)

Um painel pintado pelo artista plástico pernambucano Lula Cardoso Ayres (1910-1987) tem sofrido com uma insólita exposição à água e produtos químicos oriundos de sua integração a um lava-jato, no Centro do Recife. Em processo de tombamento pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), a obra foi executada em 1959 no icônico edifício JK, ocupado irregularmente pelo empreendimento há cerca de três anos, segundo relatos de comerciantes da área.

Com endereço oficial na Avenida Dantas Barreto, o prédio tem entrada pela Rua Engenheiro Ubaldo Gomes de Matos, por onde é possível observar relativa circulação de veículos entrando e saindo do imóvel. “‘Estacionameto’ (sic) moto”, indica a pintura no portão de ferro escancarado. Na companhia de dois clientes, a reportagem entra no local.

Soberano, a despeito da confusão de veículos estacionados e tralhas espalhadas pelo térreo, o painel se impõe de uma ponta a outra da parede principal do recinto. Intitulada “A indústria”, a obra chegou a ser restaurada em 1981, segundo informação gravada abaixo da assinatura de Lula Cardoso Ayres.

Para Andréa Gati, arquiteta da Superintendência de Cultura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a realização do restauro é um forte indicativo da relevância cultural do painel. Ela ressalta que a relevância de Lula Cardoso Ayres para arte brasileira está associada sobretudo à sua contribuição decisiva para a consolidação da arte moderna brasileira.

“Seus painéis são de importância inestimável para a cultura da cidade e do país, pois representam um dos marcos do modernismo pernambucano e da valorização da identidade regional nos quais são retratados o cotidiano, elementos da cultura popular e as paisagens do Recife, temas antes marginais”, afirma Gati.

A arquiteta também lembra que a integração de pinturas a edifícios públicos foi fundamental para ampliar a visibilidade das obras artísticas, aproximando-lhes da população. Inicialmente projetado para a área interna da edificação, o painel foi projetado de modo a estar protegido a intempéries como sol e chuva. “Com o uso que está sendo dado à área na qual o painel se encontra, obviamente os riscos de deterioração são ampliados com o contato direto com a água e possíveis respingos de produtos químicos utilizados no lava-jato”, acrescenta.

 Abandono

Marco da arquitetura pernambucana, o prédio é mais conhecido por ter sediado o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), cuja marca ainda ostenta em seu topo. Abandonado, o imóvel foi a leilão em 2008, quando seu térreo foi arrematado pelo empresário paranaense Carlos Cristo Nunes. Na ocasião, todos os pavimentos até o nono andar foram vendidos a compradores diversos, enquanto os demais seguiram em posse da União.

Em fevereiro de 2023, o JK foi alvo de vandalismo. Pessoas invadiram o local para furtar fios de cobre, quebrando portas e derrubando parte do forro do teto.

A decrepitude do prédio, aos poucos, alastra-se pelo mural artístico. Em contato com o sol e a chuva, graças a um vão aberto entre os tijolos aparentes da edificação e a rua, as primeiras gravuras começam a desbotar. Enfileirados, uma mulher, um homem e um menino, silenciosamente somem das paredes da cidade desatenta de quem falam.

“Para a conservação de obras de arte integradas à edificação é preciso antes de tudo garantir a preservação da arquitetura, da estrutura do edifício. Para isso, é primordial que a edificação possua um uso, pois edificações abandonadas são as que mais sofrem perdas irreparáveis”, alerta Andrea Gati.

Ação Civil Pública

Através da 12ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania da Capital, o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) informou que ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) visando a proteção do patrimônio histórico-cultural do mural. “No dia 06 de setembro de 2025, a 4ª Vara Cível da Capital concedeu liminar favorável ao pedido do MPPE”, diz o posicionamento.

Na ACP, obtida pelo Diario, o órgão solicita a determinação de medidas emergenciais para cessar a degradação do mural, com multa diária em caso de descumprimento. No documento, o MPPE afirma que relatórios técnicos da Fundarpe e do Instituto da Cidade Pelópidas Silveira (ICPS) apontam que a obra e o imóvel estão em condições precárias, com danos causados por ações humanas e pela falta de manutenção. 

Procurado pela reportagem, o MPPE tomou conhecimento da instalação do lava-jato no térreo da edificação e peticionou a Justiça para imediato cumprimento da liminar. A reportagem também entrou em contato com a advogada Lidiane Patrícia da Silva, responsável pela defesa do proprietário do térreo.

Segundo sua advogada, seu cliente vem tomando as providências cabíveis determinadas pela Justiça e tem “todo o interesse” na conservação da pintura e do prédio. “O Edifício JK, está em litígios contratuais acerca da compra e venda de vários andares do referido prédio, assim não podendo o mesmo ser ocupado ou negociado por hora”, ressalta a nota.

Tombamento

O mural “A indústria” aguarda sua inscrição no livro do Tombo de Pernambuco desde o dia 30 de outubro de 2019, quando seu processo de tombamento foi iniciado, junto ao de outras sete obras do artista. Procurada pelo Diario, a Fundarpe informou que, nas últimas fiscalizações realizadas no local, o estado da obra foi considerado regular, “apresentando sujidades e danos pontuais, como fissuras superficiais, sem comprometimento estrutural”.

Segundo a Fundação, em 2023, o fechamento do espaço onde a obra está instalada, com alvenaria de tijolos, foi realizado pelo responsável, com o objetivo de restringir o acesso ao bem e de proteger a obra contra ações de degradação urbana. “Nesta ocasião, a Fundarpe emitiu recomendações técnicas para conservação e preservação do bem, endossando as medidas emergenciais, entre elas o isolamento da área, como ação emergencial e temporária”, diz o órgão.

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