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Vida Urbana
200 ANOS

Cheia de 1975: Saiba como foi a maior tragédia da história do Recife

Nova reportagem da retrospectiva dos 200 anos do Diario de Pernambuco conta como foi a Cheia de 1975, tragédia que deixou 80% da área urbana do Recife afetada pelas águas

Carlos Lopes

Publicado: 18/10/2025 às 09:04

Estádio da Ilha do Retiro e redondezas durante cheia de 1975/ARQUIVO/DP

Estádio da Ilha do Retiro e redondezas durante cheia de 1975 (ARQUIVO/DP)

Por volta das 15h do dia 17 de julho de 1975, Alemão observava as águas do Rio Capibaribe subindo cada vez mais rápido, invadindo as ruas próximas a sua casa, em Volta ao Mundo, ou na Avenida Ribeiro Pessoa, no bairro de Caxangá. Do alto de um barranco, viu quando três crianças, que brincavam por perto, despencaram no rio.

Ele atendeu rápido ao pedido de socorro. Mergulhou, agarrou-se às três, e conseguiu levá-las até uma margem, deixando-as agarradas às raízes da vegetação ribeirinha. A força da correnteza, no entanto, impediu que Alemão conseguisse escapar e o arrastou, junto às baronesas, para onde não pode ser mais visto.

“Eu vi o homem morrer. Ele ainda deu adeus”, contou dona Ana Maria da Silva, moradora de um dos barracos da comunidade, à reportagem do Diario de Pernambuco.

O drama de Alemão, de dona Ana Maria e dos moradores de Volta ao Mundo foi o mesmo de milhares de pessoas que viviam na cidade do Recife em meados do mês de julho. Em mais uma reportagem da retrospectiva dos 200 anos do jornal em circulação mais antigo da América Latina, o Diario mostra a história da maior tragédia vivida na capital pernambucana: “A Cheia de 1975”.

Cidade submersa

A Veneza Brasileira ficou debaixo d’água entre os dias 17 e 18 de julho. “É a maior tragédia do século do Recife”, manchetou o Diario de Pernambuco na capa da sua edição de 19 de julho, parafraseando a declaração do então governador do estado, Moura Cavalcanti, durante uma das reuniões realizadas com o seu secretariado no Palácio do Campo das Princesas. “Foi a maior catástrofe que já atingiu Pernambuco neste século”.

As fortes e intermitentes chuvas causaram o transbordamento dos rios Capibaribe e Beberibe, deixando 80% da área urbana do Recife submersa. A capital ficou isolada do resto do estado e, em função de colapso no sistema telefônico, sem comunicação por muitas horas. A “Cheia de 75”, como ficou conhecida, deixou o trágico saldo de 107 mortos e cerca de 350 mil desabrigados.

O prefeito do Recife naquele ano, Antônio Farias, decretou estado de emergência na cidade e “providenciou a abertura de crédito especial para fazer face às despesas de assistência aos flagelados”. Um das matérias publicadas na cobertura do DP relatava o drama passado pela população do Recife e de outros 25 municípios afetados pelas águas.

“Todas as rodovias que dão acesso ao Recife estão obstruídas, sendo difícil ultrapassar os limites da capital rumo ao Interior e outras áreas da Região. Dezenas de veículos se acham encalhados em diversos pontos, principalmente ao longo da Avenida Caxangá. Entre eles, caminhões e até carretas.”

O balanço final da tragédia foi de 31 bairros, 370 ruas e praças do Recife submersos; fornecimento de energia elétrica cortado em 70% da área do município; e quase todos os hospitais inundados. Foram dois dias que a cidade nunca mais esqueceu.

A Cheia de 1966

Em termos numéricos, em 1966, houve uma enchente que causou 175 mortes, quase 70 a mais que à de 1975. Mas o rastro de destruição deixado na cidade acabou dando à cheia que completa 50 a marca de “a maior” da história do Recife.

A única barragem existente em 1975 era a de Tapacurá, insuficiente para conter o transbordamento dos afluentes dos rios Capibaribe e Beberibe. A tragédia obrigou às autoridades a construírem novas barragens que evitaram que novas cheias, de proporções similares às das décadas de 1960 e 1970, se repetissem.



O registro da enchente em papel e tinta

“Cheia, angústia e morte no Recife” foi a manchete do Diario de Pernambuco na edição do dia 18 de julho de 1975, abrindo a cobertura do primeiro dia de temporal na capital pernambucana. Embora ainda preliminares, os registros iniciais da trágica contabilidade dos estragos causados pelas intensas chuvas já assustavam.

“Repete-se no Recife a tragédia das enchentes. Desde a tarde de ontem a população sofre as conseqüências dos pesados temporais ocorridos na bacia do Capibaribe, que fizeram transbordar o leito do velho rio, destruindo casas e plantações no interior, causando desmoronamento e mortes na Capital.”, abria o texto da primeira matéria sobre a cheia.

“Tudo vai correndo dentro da rotina desse flagelo secular: primeiro o aviso sinistro das autoridades ao povo de Beira-rio—Torre, Madalena, Caxangá, Ponte d'Uchôa etc. Depois os desmoronamentos dos primeiros mocambos; em seguida, o drama dos flagelados, o êxodo dos moradores dos bairros mais vulneráveis, e afinal a água ameaçando afogar toda cidade.”

A segunda matéria estampava a preocupação de que o número de desabrigados chegasse a dez mil já na manhã daquela sexta-feira (no fechamento da edição, no dia anterior, era 3 mil). “Pontes Velha e da Torre sob a vigilância especial da Codecipe”, titulava a terceira retranca da capa.

A edição que cobriu o primeiro dia do temporal trouxe mais cinco páginas internas contando em detalhes o drama da população do Recife e região metropolitana, ilustradas com um farto material fotográfico.

“Enchente começou com 7 mortes no Grande Recife” foi o título da página 2, que apresentou os primeiros relatos das vítimas da tragédia, inclusive a história de Alemão recontada no texto anterior desta reportagem.

A página 3 cobriu os esforços do governo estadual e prefeitura no sentido de oferecer proteção aos desabrigados. Uma foto registrava criança bebendo leite, sentada em um colchão, em um abrigo improvisado.

A 5 foi aberta com o título “DNOC prevê: Recife livre das cheias só em 1979”. Além da análise do problema das enchentes na capital pernambucana sob o ponto de vista técnico do órgão competente, a página trazia um quadro comparativo, que relembrava tragédias anteriores.

As outras duas páginas mostravam o drama vivido em outros municípios da região metropolitana, como Vitória de Santo Antão, que ficou praticamente isolada com a subida das águas do Rio Jaboatão.

O segundo dia

A manchete do Diario de Pernambuco do dia 19 de julho foi certeira na classificação da “Cheia de 1975”: “É a maior tragédia do século no Recife”.

“O Recife foi atingido em mais de 80% pelas águas dos dois rios que cortam a cidade: Capibaribe e Beberibe. O sistema telefônico entrou em colapso, a maioria dos hospitais ficou isolada e o trânsito de veículos limitou-se a algumas ruas do centro da cidade e da Zona Sul. No hospital Pedro II ocorreu saque, quando flagelados invadiram o depósito de alimentos. Todas as rodovias que dão acesso ao Recife estão obstruídas, sendo difícil ultrapassar os limites da capital rumo ao Interior e outras áreas da Região.”

Quatro fotos registravam diversos pontos da cidade debaixo d’água e duas retrancas na capa atualizavam o número de mortos e de desabrigados, indicavam os caminhos que as autoridades seguiriam para reconstruir parte da cidade destruída com a enchente.

“Interdição de rodovias deixa o Recife isolado”, foi titulado na página 2. “Até às 18 horas de ontem, o Recife encontrava-se praticamente isolado, com as estradas federais interditadas, as estaduais reduzidas a duas linhas — Barreiros e Igarassu — e o transporte ferroviário restrito a Palmares e Vitória”, abria o texto principal.

Na terceira página da cobertura, o governador Moura Cavalcante reforçava a manchete do Diario como a maior tragédia, mas não apenas da capital e sim, de todo o estado. As matérias relatavam as decisões das autoridades estaduais e municipais no sentido de amenizar o drama da população e reconstruir a cidade, e pedidos de ajuda ao governo federal.

As três páginas seguintes registravam em imagens a situação do Recife com 80% de seu território atingido pelas águas, mostrando também que outras cidades do estado e capitais próximas com João Pessoa e Maceió também sofriam com cheias.

A 8 trazia um balanço preliminar do impacto da enchente no setor da indústria do estado: “Parque industrial funciona apenas 20 por cento”.

O drama da calamidade pública foi exposto na página 9: “Enchentes deixam mais de 60 mil desabrigados”. Imagens de moradores carregando trouxas de roupa na cabeça, com parte do corpo coberto de água, eram seguidas pelas de pessoas recebendo atendimento em abrigos improvisados.

A 10 cravava o caos no sistema de saúde: “Hospitais isolados com atendimento precário”.

A foto do Getúlio Vargas cercado de água ilustrou a matéria principal. As vinculadas mostravam que a situação não era diferente em outras unidades (“Maternidade atende a luz de velas”) e órgãos (“Bombeiros sem condição de atender”), além da preocupação decorrente das enchentes (“Depois da cheia, a tifo é ameaça”).

As dez páginas do primeiro caderno foram dedicadas à cobertura direta da tragédia, mas o assunto esteve presente em outros cadernos, como Esportes, que anunciava a paralisação do campeonato estadual e as imagens dos três estádios da capital inundados.


“Tapacurá estourou!”

A população do Recife ainda estava sob efeito pós-traumático da enchente, quando, dois depois, um mero boato desencadeou um pânico coletivo na capital do estado jamais visto até aquele momento. Nem depois.

“Tapacurá estourou!”, gritou alguém. Não se sabe quem, nem de onde. Apenas que a frase de duas palavras ecoou em vários bairros da cidade, quase que simultaneamente, causando um pânico descontrolado nas pessoas.

Pedestres começaram a correr aleatoriamente. Alguns invadiam ônibus, enquanto passageiros pulavam pelas janelas. Motoristas avançavam sinais e dirigiam na contramão, causando acidentes.

O comércio do centro do Recife fechou as suas portas, sendo seguido por repartições públicas, escolas e hospitais. O caos se instalou na cidade como se uma tromba d’água estivesse virando a esquina, arrastando tudo que encontrava pela frente.

“— Eu soube que Tapacurá tinha rachado e corri pra casa. Não acredito nos órgãos oficiais, porque só vieram avisar que ia haver cheia depois que a água Invadiu a cidade — disse um comerciário, qua se recusou a dar o nome.”

A edição do Diario do dia 22 de julho de 1975 trouxe este depoimento e muitos outros. Contou também como maior boato da história do Recife se espalhou pelo centro e bairros do subúrbio.

E mostrou que as autoridades de segurança do estado logo encontraram o culpado por espalhar que a barragem de Tapacurá havia estourado, como cravou o título da matéria publicada na capa da edição:

“Boato foi plano de terrorismo”.

Botes foram usados pela população durante a cheia de 1975
Alagamento obrigou moradores a subirem em postes na cheia de 1975
Estádio dos Aflitos e redondezas debaixo d'água na cheia de 1975
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