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Casal que vivia na rua trava disputa com ONG por guarda de 18 cães no Recife: "Nossa família"

Renato e Damiana eram conhecidos por trafegar pelas ruas do Recife com os cachorros em uma carroça e um carrinho de compras. ONG que está com os animais alega que eles estão mais saudáveis e felizes

Jorge Cosme

Publicado: 19/07/2025 às 08:00

O casal Damiana e Renato./Foto: Marina Torres/DP Foto

O casal Damiana e Renato. (Foto: Marina Torres/DP Foto)

Bolinha Mãe, Bolinha Filha, Skunk, Caicai, Máscara, Fujona, Trelosa, Chorão, Spike… a lista segue. Ao todo, 21 cachorros foram recolhidos, em 27 de outubro de 2022 na Ponte Buarque de Macedo, no Centro do Recife, sob alegação de sofrerem maus-tratos. Os animais pertenciam a um casal que vivia em situação de rua, Renato Andrade dos Santos e Damiana Maria Dias, que chegou a ser preso em flagrante no dia da operação.

O processo criminal por maus-tratos acabou sendo arquivado. Desde então, Renato e Damiana travam uma briga na Justiça para recuperar seus animais. “É a nossa família”, diz Renato ao Diario de Pernambuco.

Três cachorros morreram desde a apreensão. Os outros 18 estão sob os cuidados da ONG Anjos do Poço, voltada à defesa do meio ambiente e dos animais, que participou da operação.

Além da ONG, estiveram presentes na ação a Secretaria Executiva de Defesa dos Animais do Recife, Delegacia de Polícia do Meio Ambiente (Depoma), Guarda Municipal do Recife e Centro de Vigilância Ambiental (CVA).

Enquanto o casal tenta recuperar seus pets, Laura Ferraz, diretora da Anjos do Poço, resiste para manter os bichos sob seus cuidados e destiná-los à adoção no futuro. “Minha preocupação é com o bem-estar dos animais. E eu sei que esse bem-estar não é vivendo com eles [Renato e Damiana]”, ela diz.

 

O casal

Renato e Damiana, juntos há dez anos, agora têm uma casa e trabalham como ambulantes, além de catar recicláveis e realizar pequenos serviços. Antes, costumavam dormir com os cachorros embaixo de uma rampa de skate na Rua da Aurora, também no Centro da capital.

O casal já era conhecido no Recife e em Olinda por trafegar com os cachorros em cima de uma carroça e um carrinho de supermercado. “Até hoje tem gente que pergunta ‘cadê os cachorros?’ e eu digo que estão na Justiça, mas vão voltar”, conta Renato.

O caso é acompanhado desde o início pela Defensoria Pública do Estado, que está montando um dossiê para enviar à juíza responsável por definir o destino dos animais. “Eles tratavam os animais com muito amor”, argumenta a defensora pública Juliana Paranhos, do Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos.

Segundo o casal, há cães de raça entre os animais. "Eu acho que, se fossem outros cachorros que a gente vê com mais costume na rua, a situação deles não teria chamado tanta atenção", opina a defensora.

"A ONG filmou acreditando que isso ia dar uma visibilidade boa. E que estava diante de um grande caso absurdo. Mas não conhecia o caso deles, quem eles eram", acrescenta ela sobre a atuação da Anjos do Poço durante a apreensão dos animais.

Ainda de acordo com a defensora, a ONG acusa os ex-moradores de rua de usarem os cachorros como “um circo”, aproveitando da situação para pedir dinheiro.

“No meu entendimento, é absolutamente natural, porque, se eles estão com 21 cachorros na rua, eles vão pedir dinheiro para eles comerem e para os cachorros também. Isso não quer dizer que eles estão usando os cachorros como fonte de renda”, argumenta a defensora.

"A ONG também reforça estigmas contra as pessoas em situação de rua", continua. "Em alguns momentos, cita que são pessoas drogadas. A gente, por outro lado, tenta mostrar que eles têm direito a continuar na companhia dos animais deles”.

O processo criminal

Durante o processo criminal, Renato e Damiana se recusaram a fechar um acordo de não persecução penal, pois isso significaria assumir terem cometido maus-tratos, algo que eles nunca concordaram.

Posteriormente, a promotora Bianca Cunha de Almeida Albuquerque, da 35ª Promotoria de Justiça, do Ministério Público de Pernambuco (MPPE), pediu o arquivamento do inquérito policial, afirmando, após ouvir testemunhas, que "os alegados maus-tratos não se confirmaram".

"Não se pode negar que nossa sociedade alimenta profundo preconceito contra pessoas em situação de rua, julgando-as incapazes de zelar pelo bem estar de animais de estimação e até delas próprias.O próprio Estado construiu, durante séculos, uma abordagem estereotipada e criminalizada da população de rua, em vez de conceder-lhe o mínimo de direitos de cidadania”, registrou a promotora.

“O fato de Renato e Damiana viverem em situação de rua com 21 cães, e dormirem próximo a prédios residenciais de alto padrão, pode ter desencadeado a insatisfação de alguns, que acionariam, sem demora, a SEDA com informações inverídicas sobre a situação dos animais", escreveu Bianca.

Briga pela guarda

Em maio de 2023, o juiz Ivan Alves de Barros, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), determinou a restituição imediata dos cachorros. A Anjos do Poço, no entanto, pediu a suspensão da decisão.

À época, a ONG alegou que os animais estavam passando por processo de castração e que a matilha apresentava característica de doença genética relacionada à produção de melanina.

"Portanto, recomendo que os animais em questão não sejam submetidos a exposição pública evitando exposição aos raios solares", diz laudo do veterinário da ONG, João Marcelo Figueiredo.

Um segundo promotor, André Felipe Barbosa de Menezes, emitiu manifestação reconhecendo que os cães apreendidos "não estavam recebendo os cuidados adequados e compatíveis com os padrões mínimos do bem-estar animal". O membro do MPPE, entretanto, reforçou o pedido de arquivamento do caso alegando se tratar negligência de Renato e Damiana, não havendo intenção de praticar ilícito.

A Defensoria Pública tentou contato com a ONG para viabilizar a devolução, mas não conseguiu. “O juízo não conseguiu intimar a ONG para cumprimento da decisão. Só que eles [a ONG] tinham acesso aos autos. No meu entendimento, eles sabiam da decisão, mas demorou até que conseguissem intimá-los de fato”, argumenta Juliana.

Nesse ínterim, a Anjos do Poço usou outros dois recursos, sendo uma ação civil pública e um mandado de segurança. Ao Diario de Pernambuco, a diretora da ONG admite que buscou retardar o cumprimento da decisão.

"Quando o juiz pediu que eu pegasse os animais e devolvesse na Rua da Aurora eu achei aquilo absurdo. Você pega um animal que você tratou por três anos e obriga ele a viver na rua. Para mim, isso não é bem-estar animal. E aí eu me neguei a fazer isso. Eu fui contra. E aí o que eu fiz? Comecei a procrastinar para entrar com a Ação Civil Pública”, afirma.

A Ação Civil Pública

Atualmente, uma decisão dentro do processo da Ação Civil Pública impede a devolução dos cachorros. Na ação, a Anjos do Poço diz que o caso envolve animais que viviam sobre dois carrinhos de forma inadequada, "impossibilitando seus movimentos naturais, sem água e comida à sua disposição”.

A associação também afirmou que os cachorros eram “expostos pelas vias públicas da cidade do Recife” e o casal pedia “dinheiro (PIX) com alegação que era para o sustento de tais animais". A juíza Milena Flores Ferraz Cintra, do TJPE, deferiu, em caráter liminar, a permanência dos cachorros sob os cuidados da ONG.

"O mais importante da presente ação é a proteção dos caninos que são portadores de doença e que se ficarem expostos ao sol no período das 9h às 17h poderão sofrer danos irreparáveis", escreve a entidade.
A Anjos do Poço afirma ainda que, devido a uma falha na efetividade da Constituição e da impunidade, há um aumento de pessoas em situação de rua que submetem os animais à exposição em ambiente inadequados, o que se mostraria "muito rentável aos indivíduos responsáveis pela mantença [manutenção] desses animais em situações degradantes com a finalidade de angariar doações".

O grupo também assegura que várias pessoas denunciaram a situação dos animais de Renato e Damiana à Delegacia de Polícia do Meio Ambiente (Depoma).

 

A Anjos do Poço

Gina Mãezinha, Glauco, Elvis Presley, Kim, Bolsonaro, Bananeira... os nomes mudaram, mas são os mesmos cachorros. Segundo Laura, eles precisaram ser rebatizados pois não se tinha conhecimento das alcunhas dadas pelos tutores.

Agora vivem em uma área de um hectare em Camaragibe, na Região Metropolitana do Recife (RMR). Ao todo, o espaço acolhe 105 animais. Até a última quinta-feira (17), a ONG contabiliza 347 animais, entre cachorros e gatos, em seus dois endereços.

Laura Ferraz é advogada e diz coordenar o local praticamente sozinha. A ONG começou a funcionar em 2015, mas foi oficializada em 2018. Nos últimos três anos, ela atendeu mais de 5 mil bichos.

"A gente tem que ter muito recurso, então estamos fazendo as coisas aos poucos", diz Laura. O local tem uma unidade de saúde em construção, assim como o espaço para expor gatos e cachorros à adoção. Laura conta que está vendendo sua casa no bairro de Poço da Panela, área nobre do Recife, para quitar o terreno em Camaragibe. "Essa é uma empresa que não dá lucro. Porque o animal não dá lucro, dá despesa", comenta.

A diretora mostrou à reportagem como estão vivendo os cachorros de Renato e Damiana, destacando que estão mais saudáveis, com melhor pelagem e medicados quando sofrem com inflamações decorrentes da baixa melanina. “São felizes aqui”, comenta.

"Renato acha que eu sou culpada, mas eu não sou culpada. Isso foi uma operação da Prefeitura do Recife, após denúncias de que ele se aproveitava dos animais para pedir Pix", diz ela. "E você não pode manter animais em carrinhos de supermercado. Imagine 21 animais em carrinhos de supermercado, gente".

A advogada acrescenta aceitar que o casal mantenha alguns dos cachorros, mas não todos. "Ele [Renato] não pode, não tem condições financeiras de mantê-los".

Laura conta que, no início, os animais eram "extremamente agressivos", o que lhe faz suspeitar da possibilidade de algum cachorro ter matado outro naquela matilha. "Hoje você vê que estão um doce".

"Eles jamais ficavam no chão. Tivemos que trabalhar isso com eles. Eles subiam em tudo. Tinham que estar em lugar elevado para defecar. Hoje, não", acrescenta.

Apesar das várias tentativas de manter os cães sob sua guarda, ela diz que vai lidar com o sofrimento caso precise devolvê-los. "Se a Justiça mandar devolver, eu vou devolver, mas com o coração partido, sabendo que esses caninos precisam de atendimento médico que eles não vão dar."

"As pessoas dizem. 'Devolva para que eles botem de novo os cachorros no carrinho para amar da maneira que eles amam. Amar para mim é cuidar. Não existe amar sem cuidar". 

“Quem ama cuida”

Assim como a ONG diz que “quem ama cuida” ao defender a manutenção da tutela dos bichos, o casal de ex-pessoas em situação de rua diz a mesma frase para sustentar que os animais devem voltar ao convívio deles. Eles vestiam camisas com uma foto dos cachorros estampada. Damiana dizia o nome de cada animal na foto.

“Família se cuida, não se vende”, diz Renato, afirmando já ter recebido propostas para vender os animais. “Eu deixava de me alimentar para não deixá-los com fome”, conta Damiana ao Diario de Pernambuco.

Eles negam que os animais viviam sob maus-tratos e que estavam condicionados a fazer necessidades em lugar elevado. "Tem gente que tem casa, mas não cuida como a gente, com o amor, o afeto, a atenção e a preocupação que a gente tem", acrescenta o homem.

“E esse amor está matando a gente. Meu corpo enfraqueceu. Eu era mais forte. A gente sofre um desgaste por dentro, porque é perder uma família. Então a gente perdeu a vida da gente”, lamenta. "São os filhos da gente. Eu não quero me separar da minha família”.

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