Viver

Há 35 anos, Nina Hagen aterrissou o seu disco voador no Recife

Nina Hagen fez show no Recife em 19 de setembro de 1985

Durante um período de reclusão em uma casa na praia de Malibu, em 1981, a cantora alemã Nina Hagen acreditou ter tido contato com um disco voador. Segundo relatos em entrevistas e na letra da canção UFO, a nave emitia raios de luz com cores fluorescentes, muito fortes, que se moviam ao redor do objeto rosa, turquesa e amarelo. Maravilhada e paralisada, Nina sentiu uma energia nova e decidiu levar aquela experiência aos palcos. E foi assim, em um disco voador cenográfico, que o público pernambucano a viu chegar no palco do Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães, o Geraldão, em 19 de setembro de 1985. Para Pernambuco, a figura de Nina Hagen parecia realmente interplanetária: uma mulher nascida na Alemanha Oriental, musa do movimento punk, conhecida por caretas, roupas, perucas e maquiagens extravagantes.

A parafernália que vinha junto com a alemã também era "de outro mundo": uma equipe de 60 pessoas e 13 toneladas de equipamentos, como efeitos de som e luz da empresa canadense Solotech Inc, a mesma que havia realizado o encerramento das Olimpíadas de Los Angeles no ano anterior. Um espetáculo futurista. O tal disco voador foi suspenso por um guindaste no Geraldão, o principal palco para grandes shows no Recife até então.

Filha de atriz e escritor, Nina Hagen construiu um senso político precocemente por ter o ativista Wolf Biermann como padrasto desde os 10 anos. Com temperamento anarquista que não combinava com a burocracia da Alemanha Oriental, ela começou a estudar canto lírico e interpretação. Em 1976, liderou um movimento pela volta do padrasto, impedido a retornar ao país após uma viagem. Como resultado, conseguiu um visto para atravessar o muro e assinou contrato com a gravadora CBS. Inquieta, ela viajava constantemente para Londres, onde brotava o movimento punk. Na década de 1980, já mundialmente famosa, Nina Hagen se muda para os Estados Unidos e conquista o mercado mais cobiçado do mundo.

In Ekstase era o álbum de trabalho de Nina Hagen durante a visita ao Recife

A vinda da alemã dialoga com um contexto maior de abertura do Brasil para mais artistas estrangeiros, tendo como consolidação o Rock in Rio, em 1985. Foi justamente nesse festival que ela fez sua estreia no país, com um show que arrebatou o público e conquistou a imprensa brasileira. Pernambuco, mesmo que timidamente, também começava a entrar numa rota gringa com Jimmy Cliff (1980), Rick Wakeman (1981) e Menudo (1985). Essa atmosfera fez com que o superintendente do Geraldão, Eduardo Cavalcanti, assinasse um contrato com o empresário Sandro Samelli, representante da Latitude Promoções, responsável pela vinda de Nina.

A sua chegada no Aeroporto dos Guararapes, na tarde de 18 de setembro, foi acompanhada por cerca de 100 de jovens. O Jornal do Commercio registrou que, quando ela saiu do avião, foi um delírio. "Gritos, canetas e papéis propagavam pelo ar, mas Nina, com uma peruca vermelha, o rosto bem maquiado e roupas exóticas, foi rápida e entrou num dos três ônibus que a esperavam e a sua equipe. Sentou na primeira fila, deu autógrafo num papel que havia recebido e devolveu-o para os fãs com a cara meio desolada." Ela se hospedou no Hotel 4 Rodas, em Olinda, onde foi entrevistada pela TV Viva, emissora que tinha sede no município.

[VIDEO1]

O jornalista pernambucano radicado em São Paulo João Luiz Vieira, 50, tinha 15 anos na época. "No Nordeste, só ia ao Rock in Rio quem tinha dinheiro. Eu e meus colegas éramos muito jovens, então víamos tudo pela TV. Alguns artistas nos foram apresentados através do festival. A Nina, por exemplo, era muito distante do universo do Nordeste. Eu me apaixonei quando ela cantou My way, de Frank Sinatra, destruindo o arranjo original. Essa transgressão me chamou muita atenção. Quando o show foi anunciado aqui, fui um dos primeiros a comprar o ingresso no Geraldão". As entradas foram vendidas por CR$ 25 mil (arquibancada) e CR$ 50 mil cruzeiros (cadeira).

"Quando chegou o dia do show, os portões foram abertos às 15h e eu já estava lá, assim como pessoas de  Alagoas e da Paraíba”, relembra João Luiz Vieira. “Eu nunca fiz isso com ninguém na minha vida. Nina chegou no palco num disco voador e usava um ursinho na região da virilha. Fiquei bem embaixo do microfone dela. Ela olhou para mim, eu mandei um beijo e ela retribuiu. Eu vi as obturações da arcada dentária dela. Fiquei o show todo em êxtase."

A repercussão do Diario, através do colunista Paulo Fernando Craveiro, apontou que o show foi pouco rentável, rendendo CR$ 149 milhões no Recife, dinheiro pago por 3,9 mil pessoas. "Esperava-se público de 15 mil espectadores e renda de CR$ 525 milhões. A Latitude Promoções deve estar amargando prejuízo", comentou Craveiro.

Capa do caderno Viver em 18 de setembro de 1985, divulgando show de Nina Hagen.

Sobre a apresentação, o colunista escreveu: "O show, que em nenhum momento contagiou o público, começou com 70 minutos de atraso e se destacou por dois fatos não musicais: a cavalgada que a cantora deu nas costas do baterista do conjunto e a simulação de que masturbava a língua do ursinho de pelúcia que conduz numa pequena bolsa estrategicamente colocada sobre a região do púbis. A cantora fez uma sessão de exorcismo, com uma cruz, conseguindo apenas esconjurar uns pobres diabos da plateia. Os que louvam, destacam: a poderosa e cristalina voz e a expressiva interpretação de New York, New York."

Apesar do contumaz tom ácido, Craveiro registrou também a necessidade da expressão de artistas como Nina Hagen naqueles tempos austeros no Brasil e no mundo. "Os tempos mudam, cumpre reconhecer. É preciso absolvê-los e absorvê-los. [...] A roqueira integra os ácidos dias contemporâneos. Impossível dissociá-la de uma sociedade enferma pela crise. É preciso protestar. Suba-se ao palco. Que se faça careta e que se berre."

Esse é o quinto texto de uma série O Mundo Cantando para Pernambuco, que visa resgatar os grandes shows internacionais em Pernambuco no século 20.

Confira as demais reportagens em ordem cronológica:

Como a Segunda Guerra transformou a vida noturna do Recife

Há 68 anos, Recife recebia a artista 'mais cara a passar pelo Nordeste'

No Recife, show de Jimmy Cliff com Gilberto Gil foi alvo de inquérito policial

Há 35 anos, Menudo causava furor no Recife com o primeiro grande show do Arruda

Há 35 anos, Nina Hagen aterrissou o seu disco voador no Recife

Um melodrama entre Pernambuco e Julio Iglesias

Em 1991, A-ha causou histeria no Recife com show histórico

Leia a notícia no Diario de Pernambuco
Loading ...