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No Recife, show de Jimmy Cliff com Gilberto Gil foi alvo de inquérito policial

Imagem de divulgação da turnê na edição de 28 de maio de 1980

"Alguns chamam de baseado / Alguns chamam de erva / Alguns chamam de marijuana / Alguns chamam de ganja / Legalize, não critique / Legalize e eu farei os anúncios". Quando o jamaicano Jimmy Cliff, uma lenda do reggae, e o baiano Gilberto Gil cantaram os primeiros versos de Legalize It, clássico de Peter Tosh, o público do Ginásio Esportivo Geraldo Magalhães, o Geraldão, reagiu como se fosse um comando. Uma nuvem de fumaça emergiu na quadra de futebol de salão, transformada em pista de dança do ritmo. Era 28 de maio de 1980, quando o Recife recebeu o show da turnê que a dupla fez pelo Brasil.

O saldo da noite transcendente só viria no dia seguinte. Todo o alambrado foi destruído, provocando ira na administração do equipamento de esportes e eventos, enquanto o uso da erva despertou indignação em autoridades da justiça e da polícia, que chegou a abrir um inquérito a pedido de um juiz para investigar a "apologia de crime". Mas a excitação de juventude recifense tinha lá o seus motivos. Diferente do que ocorreu nos anos 2000 até a atualidade, o Recife do século 20 recebia poucos shows da música popular internacional, sobretudo para os jovens. Após a vinda de Josephine Baker em 1952, poucos episódios com artistas gringos marcaram a cidade.

Em dezembro de 1961, o astro da Broadway Gene Barry, criador e intérprete do personagem Bat Masterson (da série homônima da NBC) fez dois shows no Clube Português, através do Lions Club. Também visitou o governador Cid Sampaio, causando alvoroço em sua partida no Aeroporto. Em agosto de 1977, quando o Ginásio Geraldo Magalhães já havia sido inaugurado, o músico Ray Conniff trouxe sua orquestra para uma única apresentação no Nordeste, com promoção da Akys Show's.

Registro de Genny Barry no Recife, na edição de 18 de dezembro de 1961

A inauguração do Geraldão (1970), inclusive, impactou amplamente o circuito dos grandes shows no Recife. Durante toda a década o local recebeu grandes nomes da MPB, como Roberto Carlos, Chico Buarque, Elis Regina, Rita Lee, entre outros. E foi justamente através da intermediação de Gilberto Gil, ícone da música brasileira, que Jimmy Cliff chegou na cidade.

O jamaicano nasceu na aldeia de Sommerton, na costa da Ilha, e foi estudar numa escola de Kingston, na capital, aos  14 anos. Ainda jovem gravou dois compactos, Daisy got Me Crazy e I'm Sorry, e deslanchou na carreira de sucesso. Sua relação com o Brasil começou na década de 1960, quando gravou o álbum Jimmy Cliff in Brazil (1968) - que cita Recife na canção Serenou - e participou do Festival Internacional da Canção, no Rio de Janeiro (1969).

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Na década de 1980, ele voltava ao país na crista da onda após lançar o elogiado disco Give thankx (1978), com melodias hipnóticas, inteligentemente arranjadas e com uma voz mais madura de um homem de 34 anos. Ele fez show no Festival Internacional do Jazz, em São Paulo, curtiu o Brasil ao lado de Gil e então partiu para a excursão, que começou em Belo Horizonte (MG) e passou por Salvador (BA), onde arrastou 50 mil pessoas, até chegar ao Recife para então seguir ao Rio de Janeiro e São Paulo. Aqui, os ingressos custavam CR$ 200 (arquibancada), CR$ 300 (cadeira) e CR$ 400 (cadeira de pista).

A coletiva

Na capital pernambucana, Jimmy Cliff recebeu a imprensa no seu apartamento do hotel, onde existia uma mesa cheia de frutas da terra, como jaca, jambo e pinha. Jimmy e Gil estavam muito felizes com o resultado da excursão e com o entrosamento no palco. O diretor da gravadora WEA no Brasil, André Midani, acompanhava a dupla e serviu de intérprete para os repórteres. Na entrevista, Gil disse que a turnê era resultado de uma afinidade cultural: "O processo de emancipação cultural das comunidades negras, fora da África, ganhou aceleração muito grande nos último tempos. Daí estarmos juntos nestes recitais pelo Brasil".

Jimmy, por sua vez, mostrou-se crítico e disse ter sentido que a raça não era uma questão fundamental no Brasil. "Fundamental é a questão econômica, embora a racial também exista". Esse pensamento também explicou sua visão sobre o sucesso do reggae no país: "Durante certo tempo se fala muito em torno de uma determinada música e se diz que ela vai estourar, e naquele momento não estoura. Porém quando ninguém está falando, a música surge e começa a ser necessitada por todo o mundo. Foi o que aconteceu com o reggae no Brasil, simplesmente."

O show

Ginásio de Esportes Geraldo Magalhães na década de 1970

Na noite de 28 de maio, vinte mil pessoas cantaram, dançaram e aplaudiram a dupla por três horas. "Eles eletrizaram o público com os mais variados tipos de ritmos musicais, desde o baião nordestino até reggae centro-americano. O show, realizado no Geraldão, cujas dependências foram quase que literalmente ocupadas, está sendo considerado como o melhor do ano”, disse a cobertura do Diario, publicada dois dias depois. A banda estava vestida com trajes de guerrilheiros e, no meio do show, o escritor Abdias do Nascimento apareceu para falar sobre o livro Quilombismo, "uma das mais sérias análises já elaboradas no país sobre a questão racial e em defesa da causa negra".

No final do espetáculo, Gilberto Gil e Jimmy Cliff, abraçados, cantaram No woman no cry, sendo acompanhados por todo o público. Após o encerramento, um caminhão do tipo "jamanta", que por acaso passava em frente ao Geraldão, deu carona a todos aqueles que não foram em carros. A cobertura destacou Legalize It, como um dos destaques da noite: "Grupos de jovens acendiam bem enrolados cigarros de marijuana, como a ilustrar o apelo do grupo da Jamaica". Foi um trecho crucial para o problema que estava por vir. 

Ameaça de processo e inquérito

Em 5 de junho, a notícia Gilberto Gil e Cliff poderão ser processados relata que o advogado Teócrito Guerreiro deu entrada na Justiça com um pedido de abertura de processo contra os cantores, "apontando-os como autores de apologia de crime e incitação à prática de crime, cujas penas somadas variam entre seis meses a um ano de detenção, além de multas de CR$ 4 a CR$ 12 mil". O principal argumento foi a interpretação de Legalize it. Para Teórico Guerreiro, "a conduta dos artistas assume uma conotação de gravidade, considerando-se que a maior parte da assistência era de jovens adolescentes, cujas faixas variam dos 12 anos aos 18 anos, daí se concluir o alto teor de irresponsabilidade dos ídolos dessa nossa mal orientada juventude."

Notícia de 5 de junho de 1980

"Não é justo nem digno que, enquanto jovens de esfera social menos favorecida que não nasceram Gilberto Gil ou Jimmy Cliff, que vivem nos morros, favelas e córregos, sofram os rigores da lei anti-tóxico, enquanto que outros de camada social mais elevada fumem, pública e acintosamente maconha e, o que é mais grave, incentivado, induzidos por quem tem por profissão a comunicação musical, por aqueles que se tornaram ídolos de uma juventude, que antes de mais nada deveriam educar e nunca corromper", acentuou o advogado, que também pediu que fosse instaurado um inquérito policial.

Em 14 de junho, a notícia Juiz manda instaurar inquérito contra Gil revela que o juiz Rilton Rodrigues, da 4ª Vara Criminal, acolheu o parecer do promotor Francisco Miranda, determinado a instauração de um inquérito policial na Delegacia de Entorpecentes contra os cantores. A medida foi tomada com base em representação formulada por Teócrito Guerreiro.

"Conforme a representação, os cantores poderão ser enquadrados nas figuras pernas de apologia de crime, previsto nos artigos 286 e 287 do Código Penal, com pena variável entre três e seis meses de detenção ou ainda na Lei Antitóxico, com pena de três a 15 anos de reclusão." O caso chegou a ser encaminhado ao delegado Tito Aureliano, Titular da Delegacia de Entorpecentes, mas não teve continuidade e foi esquecido pelo noticiário.

A relação de Jimmy Cliff com o Brasil nunca arrefeceu. Em 1991, ele gravou em Salvador o álbum Breakout, lançado no ano seguinte com participações de Olodum e Araketu. O Geraldão, por sua vez, consolidou-se como palco dos artistas estrangeiros, são eles: Rick Wakeman, Nina Hagen, Julio Iglesias, A-Ha, Faith no More e Information Society. Serão episódios para as próximas reportagens desta série.

Essa é o terceiro texto de uma série O mundo cantando para Pernambuco, que visa resgatar os grandes shows internacionais em Pernambuco no século 20.

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