Dia da Mulher Dia da Mulher: artistas pernambucanas discutem machismo e resistência Mulheres da música, literatura, cinema e teatro locais vêm, há gerações, se impondo no meio artístico através do enfrentamento ao machismo

Por: Breno Pessoa

Por: Isabelle Barros

Por: Larissa Lins - Diario de Pernambuco

Publicado em: 08/03/2017 12:03 Atualizado em: 08/03/2017 12:03

Quando Dona Selma do Samba segurou o microfone numa roda de sambistas pela primeira vez, viu alguns homens sinalizando negativas por baixo das mesas. Não queriam deixá-la cantar, alguém deveria impedi-la. Percebeu que teria direito a interpretar somente uma música antes de deixar o palco, mas emendou três. Eram composições autorais, acumuladas desde a adolescência, não poderia perder a oportunidade, apesar do ambiente hostil.

Confira o roteiro de shows do Divirta-se


Dona Selma precisou se impor. Assim como fizeram a escritora Fátima Quintas, a cineasta Adelina Pontual e outras mulheres de destaque nas artes pernambucanas. Karynna Spinelli, Dea Ferraz, Clarice Freire e outros destaques da literatura, música, do cinema e das artes cênicas contemporâneos seguem o mesmo caminho.

Engajadas em diferentes segmentos, elas enfrentam o machismo para ocupar palcos, assinar roteiros, livros, composições. “Quando as mulheres estão no palco, elas ainda têm o corpo observado em detrimento do trabalho. A bailarina, a cantora, a atriz, todas elas. Algo que não ocorre com os homens, de quem se observa somente o trabalho, o talento, a dança, a voz”, avalia a sambista pernambucana Karynna Spinelli.

“É preciso bradar, se impor. Na juventude, casada com um português, ele tentou me impedir de trabalhar. Disse que não deixaria. Eu disse que ele não precisava deixar”, lembra a escritora Fátima Quintas. “Poderia ter simplesmente acatado a decisão dele, e tudo seria diferente agora”, completa a escritora, antropóloga e cronista, ex-presidente da Academia Pernambucana de Letras. No Dia da Mulher, o Viver convidou ela e outras escritoras, cantoras, diretoras e atrizes a falarem sobre enfrentamento e resistência nos meios em que atuam.

De diferentes gerações, as escritoras Fátima Quintas e Clarice Freire têm histórias de enfrentamento e resistência para compartilhar. Fotos: Joao Veloso/Esp. para o DP (Fátima) e Leo Aversa/Divulgação (Clarice)
De diferentes gerações, as escritoras Fátima Quintas e Clarice Freire têm histórias de enfrentamento e resistência para compartilhar. Fotos: Joao Veloso/Esp. para o DP (Fátima) e Leo Aversa/Divulgação (Clarice)

>> LITERATURA

Fátima Quintas, escritora

“A história da mulher é de resistência, no mundo inteiro. Desde o século 16, se desenha no Brasil uma família na qual o homem pode tudo e a mulher não pode nada. Isso é histórico, o machismo é histórico. Na minha história pessoal, e sei que isso pode parecer incrível, nunca me prejudiquei por esse tipo de resistência. Bradei, nunca aceitei. O que eu tentei fazer, mesmo não podendo me dizer um exemplo de mulher que sofreu muitas opressões, foi sempre me impor. Atravessei momentos de opressão, mas reagi. Sei que muitas mulheres reagem e não obtêm sucesso, mas eu consegui, felizmente, chegar onde queria. Não cheguei a desistir de nada por essa opressão masculina. Sem agressividade, mas com muita firmeza, eu trilhei meu caminho. Apesar disso, observo que na literatura, de modo geral, existe uma grande dificuldade em torno de ser mulher. A mulher escritora precisa ser ainda mais escritora do que os homens, precisa provar mais ainda a sua qualidade. Isso em todas as áreas, aliás. A luta da mulher é explícita, dobrada, não se pode negar. É preciso ir em frente, ser firme. Precisei lutar e lutei, não sou de desistir.”

Clarice Freire, escritora

“Sobre a minha poesia visual, me disseram uma vez que o meu traço era muito feminino. E que eu deveria deixá-lo menos feminino para ter maior aceitação do público. Todos os meus livros foram escritos à mão. Jamais vou mudar meu traço feminino porque minha alma é feminina, e meu trabalho é minha alma. Meu traço revela muito de quem eu sou e de quem me lê, nunca impediu que meu trabalho fosse reconhecido e ganhasse repercussão. Ao contrário, talvez tenha trazido isso. Em eventos femininos, também percebo a resistência às mulheres. Muitas vezes sou a única em rodas de debate formadas por homens. Uma vez falaram que eu era bonita e ficaram surpresos com minha fala, porque usei argumentos inteligentes. É o tipo de comentário que eles pensam que é elogio, mas não é. Se uma mulher é jovem e bonita, não pode ser inteligente? O mesmo se aplicaria a um homem? Contudo, é muito bonito ver como a minha alma feminina tem conversado com a alma feminina de mulheres e homens. Eu percebo que essa alma feminina, presente em todos nós, tem muito o que conversar e tocar no outro.”

Dona Selma do Samba e Karynna Spinelli enfrentaram o machismo no samba. Fotos: Peu Ricardo/Esp. para o DP (Selma) e Nilton Leal (Karynna)
Dona Selma do Samba e Karynna Spinelli enfrentaram o machismo no samba. Fotos: Peu Ricardo/Esp. para o DP (Selma) e Nilton Leal (Karynna)

>> MÚSICA

Selma do Samba, sambista

“Componho desde os 14 anos e somente aos 55 tive coragem de pegar o microfone numa roda de samba e cantar. Isso porque o meio era machista, repleto de homens. Eles questionavam: uma mulher aqui? E mais: uma mulher branca fazendo samba? Havia muita resistência. Por baixo da mesa, alguns sambistas sinalizavam negativas, dizendo aos outros para não me deixarem cantar, para não darem ouvidos às minhas composições. Devagar, fui conquistando espaço, me firmando. A gente tem que ser teimosa, muito teimosa. É preciso ir em frente, não desanimar, passar por cima dos machistas, dos imbecis. E, acredite, eles vão existir. Se você tem talento, se tem uma bagagem e sabe que tem valor, você tem que se impor e mostrar o que tem. Enfrentei muito preconceito, mais até de outros sambistas do que do público, mas não desisti. Minha voz falhou quando peguei o microfone pela primeira vez, minhas pernas tremiam, mas não deixei eles me intimidarem. Hoje não sinto mais esse tipo de preconceito.”

Karynna Spinelli, sambista
“No início da minha carreira, em 2006, enfrentei muita resistência por ser mulher. O samba, historicamente, é um gênero protagonizado por homens. Eles cantam, tocam, assinam as composições. Os principais movimentos foram capitaneados por homens. Eu sentia resistência em tudo, dos outros artistas, do público. As pessoas me olhavam como objeto de cobiça sobre o palco, não como uma profissional. Era como se eu tivesse que agradar aos homens, atrair eles. Até hoje acontece dos homens na plateia serem abusivos, me ofenderem verbalmente. Além disso, sempre houve resistência por eu ser praticante do candomblé. Mas evoluímos, temos mais espaço agora. Sou mãe, dona de casa, bancária e artista, continuamos com uma carga muito pesada, temos que ter várias mãos. Mas há mais oportunidades. Meu maior conselho às mulheres que ingressam no samba, nas artes em geral, é se unirem umas às outras. É preciso criar uma rede de proteção, dar suporte, dar chances.”

Adelina Pontual e Déa Ferraz são expoentes de diferentes fases do cinema e enfrentaram resistências. Fotos: Blenda Souto Maior/DP (Adelina) e Beto Figueiroa (Déa)
Adelina Pontual e Déa Ferraz são expoentes de diferentes fases do cinema e enfrentaram resistências. Fotos: Blenda Souto Maior/DP (Adelina) e Beto Figueiroa (Déa)

>> CINEMA

Adelina Pontual, cineasta

“É uma profissão que é muito machista e masculina, mas as mulheres sempre estiveram metidas nela. Ocorre que, às vezes, elas não têm a mesma repercussão que os homens, até porque a maioria delas entrou em áreas técnicas, como produção. Mas, realmente, ainda são pouquíssimas diretoras. Você tem que ir atrás, realmente lutar, cavar espaço. Se tem alguma barreira por conta de gênero, você tem que se impor, se é o que você quer. Antigamente era mais complicado, porque era tudo muito concentrado no Rio e São Paulo, de equipamentos a técnicos, mas a democratização da tecnologia e dos meios de produção facilitou o acesso. Acho que as mulheres têm de estar, igualitariamente, em todas as áreas e carreiras, não só no cinema.”

Dea Ferraz, cineasta
“O cinema é, sim, um meio muito masculino e, portanto, machista. Tem homens por todos os lados, realizando, escrevendo sobre, fazendo roteiro etc. Enquanto a gente não equilibra forças, esse modelo hegemônico, masculino, branco e heterossexual vai predominar. Mas acho, sinceramente, que isso está mudando, e digo pelo que vejo no meu entorno, pela quantidade de filmes sendo produzidos por mulheres. E não é por acaso, mas porque a mulherada está cada vez mais consciente do lugar e da necessidade de quebrar esses paradigmas. É um momento de luta, senão, a gente fica sempre nesse mesmo lugar.”

Atrizes, Augusta Ferraz e Andrea Veruska destacam a evolução na igualdade entre os gêneros sobre os palcos. Fotos: Paulo Paiva/DP
Atrizes, Augusta Ferraz e Andrea Veruska destacam a evolução na igualdade entre os gêneros sobre os palcos. Fotos: Paulo Paiva/DP

>> TEATRO

>> Augusta Ferraz, atriz e diretora

Nunca senti preconceito por ser mulher, mas sentia uma certa supresa das pessoas em ter começado bem jovem nas artes cênicas e já dirigindo, escrevendo. Nunca me senti menor do que ninguém porque prestar atenção nisso não fazia parte do meu cotidiano. Convivi muito com gente mais velha, com muitas mulheres à frente de seu tempo. No entanto, isso não quer dizer que o mundo, em si, seja assim. As coisas estão muito barra-pesada e as mulheres se sujeitam a certas coisas em determinadas circunstâncias. A violencia é contra tudo e todos, inclusive contra os homens, que também sofrem muito. Mesmo assim, apesar de tudo, o mundo está muito melhor. Nós temos coisas muito próprias, como nossa biologia, e nós já conquistamos muitos espaços. Há um século, os homens eram os donos de tudo e as mulheres andavam com roupas pesadíssimas. Hoje, as mulheres mais velhas estão com os braços de fora, mostrando suas rugas, querendo melhorar seus corpos. É hora de gritar, de falar, de exigir respeito.

>> Andrea Veruska, atriz

“Em teatro, nunca sofri nenhum tipo de diferença por questões de gênero, mas já vi um certo preconceito direcionado a mulheres diretoras de espetáculos. Não parece haver muito espaço para elas. Passei por muitos problemas e sempre tentei canalizar isso para a arte. Minha intenção é trabalhar com violencia de gênero e desde que comecei a trabalhar principalmente com o Teatro do Oprimido, e com mulheres, é como se eu tivesse descoberto meu caminho. Nas oficinas, a gente sempre se depara com histórias de abuso, de violência. É sempre dificil ouvi-las e, como eu já passei por isso, é como se algo em você fosse acionado. Estabeleço uma relação de cumplicidade com essas mulheres. Ser do sexo feminino é uma luta diária, é tentar fazer suas ideias serem respeitadas, pois você sabe que quando sai de casa está sujeita a escutar alguma piadinha ou sofrer alguma agressão. Essa sociedade patriarcal não nos favorece, mas, ao mesmo tempo, saber que a gente precisa se impor me instiga.”

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