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Caso Miguel: Parecer jurídico da defesa de Sarí rejeita culpa ou intenção de matar

Publicado em: 01/07/2020 12:49 | Atualizado em: 01/07/2020 12:59

Sarí Côrte Real prestou depoimento sobre a morte do menino Miguel na última segunda-feira (29). (Foto: Leandro de Santana/Esp. DP.)
Sarí Côrte Real prestou depoimento sobre a morte do menino Miguel na última segunda-feira (29). (Foto: Leandro de Santana/Esp. DP.)
Sarí Côrte Real, suspeita da morte do menino Miguel Otávio, não teria cometido homicídio com dolo eventual, culposo ou abandono de incapaz. É o que diz o parecer jurídico emitido pelo professor de direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Cláudio Brandão, a pedido da defesa da primeira-dama de Tamandaré. No documento, datado de 27 de junho de 2020, Cláudio descarta culpas ou ações diretas, com intenção de matar, ao ressaltar em diversos tópicos que não há como comprovar algo concreto nas ações ou intenções da mulher. No entanto, a decisão final, que cabe ao delegado Ramon Teixeira, será divulgada em coletiva de imprensa virtual nesta quarta-feira (1).

O escritório de advocacia de Célio Avelino de Andrade, que cuida da defesa de Sarí, elaborou seis perguntas a Cláudio, especialista em direito penal e criminologia. Antes de respondê-las, o professor da UFPE embasa os argumentos sobre cada um dos três tipos de crimes que podem ser atrelados à morte da criança. O primeiro, de abandono de incapaz com resultado morte: “O citado tipo subjetivo exige a vontade livre e consciente de abandonar, para que se concretize a tipicidade (...) Os elementos do caso concreto afastam por completo o tipo subjetivo de abandono de incapaz”.

“Segundo os registros, por quatro vezes a agente (Sarí) tentou retirar o menor (Miguel) do elevador, o qual insistia em encontrar a mãe (Mirtes), tentando dissuadi-lo do afastamento. Isso, por si só, é conduta diligente incompatível com a vontade livre e consciente de abandonar, com a respectiva criação de uma situação de perigo. Outro elemento vem corroborar a ausência de tipo subjetivo. Ato contínuo a entrada do menor no elevador, a agente ligou por três vezes para o celular da mãe, tudo conforme prova documental fornecida (ata notarial), o que desvela subjetivamente o exercício de diligência. Tal fato é substancialmente incompatível com o dolo de perigo”, argumenta.

Sobre o dolo eventual, Cláudio coloca que “a causação do resultado não se verifica na inação mesma, mas sim em um dever de impedimento do resultado, quando tal dever for reconhecido como possível e devido pelo Direito” e “não pode haver dolo sem que, no plano da consciência, o sujeito (Sarí) represente intelectivamente o resultado (morte de Miguel) em potência, pois apenas com essa representação intelectiva surge em sucedâneo a volição ou a assunção do risco (de matar)”.

Quanto a homicídio culposo, que precisa de três elementos para ser caracterizado (culpa, ocorrência do dano e omissão do agente), ele reconhece que houve a “ocorrência do dano, que se traduz no resultado morte do menor, e na violação de um dever objetivo de cuidado, pela omissão da agente no dever de vigilância se lhe atribuído pela posição de garante”. 

Mas a culpa em si não se sustenta, em sua visão, porque não se vê a “previsibilidade” dela. “Para a previsibilidade não basta a potência imaginativa da situação de fato que acarretou o resultado, sendo necessário um juízo de probabilidade consoante as regras da experiência”, alega, passando, em seguida, para as respostas aos questionamentos da defesa de Sarí.

Perguntas da defesa e respostas do criminalista
1 - Diante da informação de que Mirtes havia deixado Miguel aos cuidados de Sarí, seria possível, em tese, a prática de crime comissivo por omissão? Sarí, naquele momento, assumiu a posição de garante?
É, em tese, possível a prática de crime comissivo por omissão porque a posição de garante é decorrente do art. 13, §2°, “b” do Código Penal. O citado artigo confere a pertinência objetiva à tipicidade e o nexo causal se estabelece por conta da relevância da inação, vez que no caso é imputado o dever de cuidado, pelo reconhecimento da posição do garantidor. Deve ser ressaltado, em continuação, que a potência da tipicidade somente se concretizaria, na hipótese, se os seus aspectos subjetivos também se perfizerem, o que não se verificou na consulta em tela, conforme fundamentado no item anterior.

2 - A conduta de permitir que a porta do elevador se fechasse com o garoto em seu interior enseja automática responsabilização penal por todo e qualquer eventual resultado lesivo à criança?
Não existe responsabilidade objetiva na ciência penal, a qual, em todos os países democráticos, gravita em torno da sua antítese. Isto significa a não existência de responsabilidade penal automática, nem no caso em exame, nem em nenhuma outra situação que venha a ser submetida ao direito pátrio, como foi abordado no item anterior.

3 - O resultado morte pode ser imputado a Sarí a título de dolo direto ou eventual?
O dolo, em qualquer de suas modalidades, possui um elemento intelectivo: a consciência. Assim, no dolo direito o agente representa, no plano da consciência, o 32 resultado e dirige sua vontade para o fim (querer o resultado) e no dolo eventual o agente representa o resultado, no plano da consciência, e assume o risco de sua produção (assumir o risco de produzi-lo). No caso concreto, não houve o elemento intelectivo em tela, não se imputando nenhuma das espécies dolosas, conforme fundamentado no item anterior.

4 - O resultado morte pode ser imputado a Sarí a título de culpa, ensejando a tipificação do homicídio culposo previsto no art. 121, §3º, do Código Penal?
O tipo culposo tem como requisito subjetivo o afluxo de três elementos: violação de um dever objetivo de cuidado, efetiva ocorrência de um dano e previsibilidade do resultado. A questão fulcral objeto dessa consulta gravita em torno da previsibilidade e, de acordo como os critérios da ciência penal, ela não ocorreu, conforme fundamentado o item segundo.

5 - A conduta de Sarí, ao não retirar Miguel do elevador, permite o enquadramento no crime de abandono de incapaz previsto no art. 133 do Código Penal?
Não. O tipo de abandono de incapaz congloba todos os requisitos objetivos e subjetivos dos delitos de perigo. Tais requisitos não estão presentes na situação que me foi submetida, conforme fundamentação posta no item anterior.

6 - Na figura qualificada pelo resultado prevista no art. 133, § 2º, do Código Penal, em que há qualificação do crime de abandono pelo resultado morte, a responsabilização penal pelo resultado é consequência automática de sua ocorrência?
O tipo do abandono de incapaz somente se configura se presente a vontade livre e consciente de abandonar, sendo ela necessariamente vinculada aos requisitos dos elementos subjetivos dos crimes de perigo. Nesse tipo, o resultado morte enquanto 33 figura típica derivada somente pode ser imputado se presentes os três requisitos da culpa, caso contrário, o artigo dezenove do diploma penal afasta a imputação do resultado qualificador. Porém o tipo de abandono de incapaz não é pertinente com a situação que me foi posta, conforme fundamentado no item segundo.

Relembre o caso
Miguel morreu ao despencar de uma altura de aproximadamente 35 metros, do nono andar do edifício Píer Maurício de Nassau, que integra um condomínio de luxo popularmente conhecimento como Torres Gêmeas, localizado no bairro de São José, área central do Recife. No dia da tragédia, 2 de junho, chorando e procurando pela mãe, a criança entrou no elevador do edifício duas vezes para buscá-la. Ele chegou a ser impedido pela primeira vez por Sarí, mas conseguiu se desvencilhar na segunda tentativa. Em vídeos de câmeras de segurança, a mulher aparece deixando o menino sozinho no elevador e apertando botões.

Como Sarí estava com a "guarda momentânea da criança", ela foi parcialmente culpada pela Polícia Civil pelo acidente, caso previsto no art. 13 do Código penal, que trata de ação culposa, por causa do não cumprimento da obrigação de cuidado, vigilância ou proteção. Após ser presa em flagrante, pagou uma fiança de R$ 20 mil e foi liberada. Ela está sendo investigada por homicídio culposo, onde não caberia intenção de causar a morte da vítima.
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