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PANDEMIA

Recorte racial da Covid-19 revela desigualdade social causada pelo racismo

Publicado em: 22/06/2020 07:00 | Atualizado em: 22/06/2020 07:38

A ativista Joice Paixão, 35, afirma que comunidades da Várzea, afetadas pelo racismo estrutural, são atingidas com força pela pandemia (Foto: Bruna Costa / Es. DP Foto)
A ativista Joice Paixão, 35, afirma que comunidades da Várzea, afetadas pelo racismo estrutural, são atingidas com força pela pandemia (Foto: Bruna Costa / Es. DP Foto)
Desde o dia 8 de junho a Secretaria Estadual de Saúde (Ses-PE) vem colocando em seu boletim diário da Covid-19 os dados de raça e cor das pessoas que desenvolvem a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Srag) por conta do novo coronavírus. Esse recorte racial revela que quase 78% dos casos graves da doença são em pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas. 

No boletim epidemiológico do úlitmo sábado (20), registrou-se 77,5% de pretos ou pardos que desenvolveram Srag. É importante ressaltar que das 17.976 fichas de paciente consultadas pela Ses-PE, apenas 6895 tinham dados de raça e cor de pele preenchidas. A população de Pernambuco é de cerca 9.359.000 habitantes segundo dados de 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Desse total, 6.254.000 (66,8 %) é de pessoas negras. A diferença entre o percentual de casos graves entre negros e do percentual de negros na população total do Estado é de cerca de 12%.

Do mesmo modo, o número é similar ao registrado no Recife. No boletim da capital pernambucana da último sábado (20), 73,9% dos doentes graves registrados eram negros, ou seja, pretos e pardos. Também com uma discrepância causada pela falta de preenchimento desse dado nas fichas dos pacientes. Das 7448 fichas consultadas pela Secretaria de Saíde do Recife, só 2052 tinha essas informações preenchidas.
 
Apesar do pouco tempo em que as autoridades estão levando esse dado em consideração, um indício de como se dá essa diferença estatística está no bairro da Várzea, Zona Oeste do Recife. A localidade acumulou, no dia 20 de junho, 59 mortes e 279 casos graves de Covid-19. As mortes são 21% do total de casos graves. Em comparação, o bairro de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, registrou no mesmo período 633 casos graves da doença causada pelo novo coronavírus e 102 mortes. Para o bairro mais rico, as mortes são 16% do número de casos graves. Um número alto, mas cinco pontos percentuais menor que o da Várzea.

A cientista social e ativista Joice Paixão, vê de perto essa realidade. Ela é coordenadora do espaço solidário Gris, que atende crianças de 5 a 15 anos em situação de vulnerabilidade social no bairro da Várzea. “Nós fazemos um trabalho de acolhimento e apoio pedagógico a essas crianças e adolescentes. Damos reforço escolar, com acompanhamento pedagógico para o desenvolvimento de potencialidades delas. Trabalhamos com 72 famílias, mas com a pandemia ampliamos a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e máscaras”, explica Joice.
 
Espaço Gris, na Várzea, atende famílias em situação de vulnerabilidade  (Foto: Bruna Costa / Es. DP Foto)
Espaço Gris, na Várzea, atende famílias em situação de vulnerabilidade (Foto: Bruna Costa / Es. DP Foto)
 

“A maior parte da população pobre na área é de pretas e pardos. Por trás do espaço Gris existe a Vila Arraes, que é uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) do Recife. Lá tivemos por esses dias mais de 15 mortes confirmadas para Covid-19. Além de outras 12 mortes causadas pela síndrome respiratória aguda grave (Srag), mas sem confirmação de coronavírus. Moradores desses locais vêm aqui no nosso espaço pegar cestas básicas e participar das atividades lúdicas. Uma mãe, que estava na fila para pegar uma cesta, teve confirmação de Covid-19. Por isso agora só entregamos com hora marcada, para evitar filas e aglomerações”, continuou a ativista.

Para Joice, a desigualdade social na localidade onde mora está diretamente ligada ao racismo. “Aqui perto temos uma família de 11 pessoas, negras, que mora em uma casa de quatro cômodos. Não tem como esse pessoal fazer isolamento social. As casas também não têm encanamento. Certa noite, uma vizinha nossa teve que carregar água para usar em casa de uma rua para outra, dando a volta no quarteirão. Só nesse trajeto que ela fez tivemos seis residências com casos graves de Covid-19, então ela precisou se expor para ter uma coisa básica, que é água”, contou.

O dado racial é colhido pelo sistema de saúde, que pergunta aos pacientes como eles se autodeclaram em relação à cor da pele. É o que conta a bióloga Ana Cláudia, residente sanitarista que trabalha junto à Secretaria Estadual de Saúde (Ses-PE) em campanhas de vacinação e de conscientização. A profissional de saúde, que se declara preta, chegou a contrair o novo coronavírus e apresentou um quadro leve da Covid-19. “Nos primeiros dias eu tive dor de cabeça, dor no corpo e crises de asma, que duraram mais tempo”, afirmou

A sanitarista afirma que o dado racial causa desconforto ao ser preenchido pelos pacientes. “O campo de raça cor quando se preenche a ficha é algo que toca as pessoas. Alguns ficam com vergonha de dizer sua cor. Principalmente entre as pessoas mais velhas. Eu vejo que as pessoas que se dizem pretas, percebo até que é uma afirmação da própria cor. Nesse caso, muitas delas falam com orgulho”, disse. 

De acordo com a cientista social Edna Jatobá, coordenadora-executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), entidade civil que promove acesso à segurança e assistência jurídica a populações vulneráveis, o racismo estrutural é a principal causa para que a maior parte dos casos graves de Covid-19 esteja em pessoas negras. “O que acontece em Pernambuco e no Brasil como um todo é que todas as piores estatísticas, quando falamos em problemas e coisas ruins, são determinadas pelo racismo estrutural”, avalia.

“Esse racismo determina que a maior parte das pessoas nas estatísticas ruins, em pior situação, é negra. Sejam estatísticas do sistema prisional, sejam da violência letal, as mortes em decorrência de atividades policiais, estatísticas de evasão escolar, etc”, continua a cientista.

“Já nas boas estatísticas, as pessoas pretas e pardas não são a maioria. Ficam abaixo do 60%. Quando falamos de acesso a pós-graduação, mestrado e doutorado. Acesso pleno à saúde, acesso a rendas maiores. Isso é determinado pelo crivo do racismo estrutural. Essa régua sempre pende para que as pessoas negras sejam maioria em todas as mazelas sociais, e com a Covid-19 isso não seria diferente”, disse Edna.

Questionada sobre o porquê de pessoas negras desenvolverem casos mais graves de Covid-19, a Secretaria Estadual de Saúde (Ses-PE) respondeu que os dados de raça e cor dos pacientes estão sendo considerados muito recentemente pelos boletins epidemiológicos. A Ses-PE diz que é muito precipitado tirar qualquer conclusão sobre esse dado e que, também, não seria papel do governo estadual interpretar esses números.

Também procurada, a Secretaria de Saúde (Sesau) do Recife afirmou que publica diariamente, desde o dia 14 de março, os boletins epidemiológicos de Covid-19 na capital pernambucana. “Todos os boletins trazem o recorte de gênero, idade, período de início dos sintomas e bairro de moradia das pessoas infectadas pelo novo coronavírus, conforme os campos pedidos no sistema de informação e-SUS VE, do Ministério da Saúde, para notificação dos casos leves, quanto na plataforma FormSUS, da Secretaria de Saúde de Pernambuco, para notificação dos casos graves e/ou internados. Desde o último dia 8, a Sesau Recife passou a divulgar também os casos de covid pelo recorte da raça”, diz nota da Secretaria.
 
A Secretaria de Saúde do Recife afirma que considera a variável raça de “grande importância”. A gestão afirma que “a partir dessas informações, é possível ter um diagnóstico mais completo da situação e planejar ações e políticas específicas para a população negra, por exemplo, através da Coordenação da Política de Atenção à Saúde da População Negra do Recife”. 

Apesar disso, a prefeitura alega que ainda não é possível traçar um perfil de pacientes levando em consideração sua raça a partir dessas informações específicas porque esse campo só foi incluído nos sistemas recentemente. O preenchimento dos campos de raça e cor também não é obrigatório por parte das unidades de saúde que entregam os dados às secretarias de saúde. “A Secretaria Municipal de Saúde sempre reforça, junto às unidades públicas e privadas do município, a importância do preenchimento adequado da variável raça”, conclui a nota.

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