Saúde

Gripe espanhola: 100 anos da epidemia mais letal da história recente

Doença, que recebeu esse nome em função da guerra, matou mais de 50 milhões de pessoas no mundo e chegou ao Recife em setembro de 1918.

Publicado em: 01/09/2018 14:00 | Atualizado em: 03/09/2018 15:05

Hospital militar de Emergência,no Kansas, Estados Unidos, durante uma pandemia de gripe Espanhola. Crédito: U.S Army (Crédito: U.S Army)
Hospital militar de Emergência,no Kansas, Estados Unidos, durante uma pandemia de gripe Espanhola. Crédito: U.S Army (Crédito: U.S Army)

Há 100 anos, o Recife parou. As escolas cancelaram as aulas. Os clubes derrubaram a agenda de programações. As igrejas suspenderam as missas. Nas ruas, não se via quase ninguém. Quem não estava agonizando em casa ou chorando as perdas repentinas, estava com medo. O mundo se abateu diante da pandemia mais letal de que se tem conhecimento na história recente: a gripe espanhola, responsável por contaminar um terço da população do planeta e matar 5% dela. Capaz de provocar mais mortes do que as que aconteceram em combate nas duas grandes guerras mundiais. Em um século, essa história provocou avanços na medicina, mas muitas lições não aprendidas ficaram pelo meio do caminho e podem ser determinantes para a gravidade de novos episódios como esse.

No fim de agosto de 1918, os primeiros casos de gripe espanhola começaram a ser reportados no mundo. As pessoas apresentavam dores de cabeça, febre, calafrios, vomitavam sangue, tinham perturbações nos nervos cardíacos, infecções no intestino, nos pulmões e nas meninges. Primeiro foram Estados Unidos e Europa, em seguida a doença se alastrou para a Ásia e as Américas. Em setembro daquele ano, chegou ao Brasil com navios que aportavam em cidades portuárias como Salvador e Rio de Janeiro.

No Recife, a doença teria desembarcado com dois passageiros acometidos que estavam no vapor Piauhy no dia 24 de setembro, segundo notícia publicada no Pequeno Jornal e  recontada na dissertação “Recife, uma cidade doente: a gripe espanhola no espaço urbano recifense”, do historiador e professor da Faculdade Alpha Alexandre Caetano Silva, realizada na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Em outubro, aconteceu o apogeu da gripe. A cidade parou, as pessoas não podiam sequer acompanhar os enterros dos parentes. Naquele mês, chegaram a morrer 100 pessoas por dia na cidade. Há relatos de que, à noite, os únicos sons ouvidos eram de tosse e do martelar dos caixões”, conta o pesquisador.

Em um mês, a gripe provocou 1,8 mil mortes que se têm conhecimento, 70% da mortalidade da cidade naquele mês. Estima-se, entretanto, que tenham sido pelo menos o dobro de vítimas. Cerca de 120 mil doentes, numa capital que tinha 220 mil pessoas. A gripe espanhola foi provocada pelo vírus da influenza H1N1, que se tornou famoso sobretudo depois da pandemia de 2009. E porque ele deixou esse rastro?

É que o vírus da gripe tem uma capacidade altíssima de recombinação e adaptação para burlar o sistema imune, explica o pesquisador do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CpqAM/Fiocruz) Lindomar Pena. Segundo ele, o “segredo” está no significado da sigla que nomeia o agente infeccioso. “O vírus da influenza tem vários tipos, A até D. O mais importante para os humanos, causador de todas as pandemias, é o A. Além disso, tem um genoma de oito segmentos e duas proteínas principais em sua ‘casca’: a neuroaminidase (N) e a hemaglutinina (H). O N tem 11 subtipos e o H 18 subtipos, que podem se recombinar.”

Até 2005, pouco se sabia, entretanto, mais detalhes que pudessem ter explicado tantas mortes. Parte das respostas vieram depois que o corpo de uma vítima foi recuperado no Alaska e o vírus foi “ressuscitado” em laboratório. “Descobriu-se que ele, por si só, é extremamente letal. Tem uma capacidade de infectar células de maneira eficiente e se espalhar pelo corpo”, explica Lindomar Pena. Isso, associado ao fato de que naquela época não existiam antibiótico, esquema de notificação ou vacina, muito menos hospitais suficientes para receber todos os doentes, contaram na soma da tragédia.

Do mesmo jeito que veio, a epidemia se foi e no fim de outubro de 1918 a vida cotidiana começou a se reorganizar nas cidades. No Recife, o episódio fomentou a consciência de caráter social para a atuação do estado nas políticas públicas de saúde. Depois dela, vieram outras três pandemias mundias de gripe, sem a mesma gravidade. Entre os especialistas, é unanimidade que uma próxima virá, mas não é possível prever quando. A dúvida é: a sociedade está mais preparada e alerta?
 
Vírus da gripe não deve ser subestimado
Lindomar Pena e Adalúcia Silva pesquisam atualmente vírus da influenza em suínos em Pernambuco. Crédito: Thalyta Tavares/DP (Crédito: Thalyta Tavares/DP)
Lindomar Pena e Adalúcia Silva pesquisam atualmente vírus da influenza em suínos em Pernambuco. Crédito: Thalyta Tavares/DP (Crédito: Thalyta Tavares/DP)

Aquela máxima de “é só uma gripe” deveria ser revista, dizem os especialistas. A influenza é, historicamente, subestimada de maneira errônea pela população. Não bastasse o fato de ser muito adaptável, o vírus tem como hospedeiros – o que os mantém na natureza – as aves aquáticas. Nela, ocorrem mutações que podem chegar a aves terrestres, suínos, humanos, mamíferos voadores, equinos e caninos. Não se pode erradicá-lo, apenas controlá-lo e tratá-lo. Por isso, dentro desse contexto, a vacina tem importância como fator de prevenção e, sobretudo, para evitar que os casos se agravem e levem à morte.

“O vírus pandêmico de 2009, por exemplo, tinha genes de aves, de humanos e de suínos, algo que até então não tinha acontecido”, explica Lindomar Pena. O vírus de 2009, inclusive, é como se fosse um “primo distante” do vírus de 1918. A última epidemia, diante desse caráter imprevisível, provocou uma mudança na forma de monitoramento da gripe. “Em 2012, percebeu-se que era importante não só monitorar a H1N1, mas os outros tipos. Ampliou-se a definição de caso e a notificação ficou mais sensível”, explica a gerente de Prevenção e Controle das Doenças Imunopreveníveis da SES-PE, Ana Antunes.

Em 2009, por exemplo, Pernambuco teve 200 casos de H1N1, com nove mortes. Atualmente, a vigilância da gripe é feita a partir da notificação de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRGA). Isso significa que os casos mais graves, de internamento, que apresentem sintomas de infecção respiratória, são notificados em todos os hospitais. Desses, se investiga se é gripe ou não. Em Pernambuco, há também quatro hospitais sentinelas para monitorar os casos leves. Além do monitoramento feito em UTIs sentinelas. Os dados que saem desse monitoramento anual servem para gerar informações de quais os tipos de vírus da gripe que estão circulando no ano vigente e ajudam a Organização Mundial da Saúde (OMS) a estimar quais circularão no ano seguinte.

Essa informação é fundamental para a produção da vacina. “Um tipo circula mais ou menos dois anos. Até 2009, só se vacinavam os idosos. Isso também mudou e foram incluídos outros grupos de risco, como imunossuprimidos, gestantes, crianças, profissionais de saúde”, lembra Ana Antunes. Tanto ela como Lindomar ressaltam que a vacina é segura, a despeito dos boatos. Neste ano, foram vacinadas 2,4 milhões de pessoas no estado. Pernambuco tem 98 casos de A(H1N1) confirmados, com 15 óbitos. “Neste ano, temos dois tipos de vírus, H1N1 e H3N2, circulando simultaneamente, o que pode influenciar para termos mais casos e óbitos do que no ano anterior. Também temos uma curva de Síndrome Respiratória maior. Em setembro, teremos uma reunião nacional com o Ministério da Saúde e vamos analisar esse quadro”, disse Ana Antunes.

Populações vulneráveis são principais acometidas em situação epidêmica até hoje
Severina Silva, 59 anos, sofre até hoje com dores provocadas pela chikungunya. Crédito: Leo Malafaia/Esp. DP (Crédito: Leo Malafaia/Esp. DP)
Severina Silva, 59 anos, sofre até hoje com dores provocadas pela chikungunya. Crédito: Leo Malafaia/Esp. DP (Crédito: Leo Malafaia/Esp. DP)

Na época em que a gripe espanhola chegou ao Recife, a cidade vivia um momento de transformação urbana. Influenciada pelas reformas urbanas dos países europeus, a capital pernambucana fazia desaparecer do seu centro históricos locais como a praia do Brum e a praça Santos Dumont para dar lugar a largas avenidas. Também nesse período, o município recebia uma massa formada por ex-trabalhadores da agricultura de exportação e ex-escravos. Quando a pandemia chegou, veio à tona o debate sobre a influência da baixa qualidade de moradia e de saneamento na disseminação da doença.

“Em nome do progresso, foram iniciadas reformas no Rio de Janeiro que basearam as mudanças no Bairro do Recife com a desculpa da modernização. A partir de 1911, houve a destruição dos imóveis indiferentes às demandas judiciais”, diz o professor de história da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Carlos Miranda. As camadas mais carentes da sociedade foram as mais afetadas pela pandemia de gripe espanhola no Recife. Era pessoas que viviam em locais insalubres, com compartimentos mal divididos sem luz e iluminação, diz Alexandre Caetano, em sua pesquisa.

Vieram à tona nos jornais de oposição da época, como A Província, denúncias sobre os canais sujos da cidade, a proliferação de mosquitos, em detrimento do cuidado de limpeza com as ruas e avenidas centrais. Um século depois, o Recife ainda não deu conta dessa mudança e esses problemas ainda permanecem determinantes na forma como se espalham as doenças.

“Quando foram implantados os primeiros sistemas de água e esgoto no Brasil, as primeiras áreas atendidas foram os centros comerciais das cidades e as de população mais rica. O contexto brasileiro de iniquidade social, para além de suas características naturais de temperatura e umidade, determina socialmente a vulnerabilidade das populações mais pobres às emergências ou reemergências, e mesmo ao convívio, com a endemização de doenças”, explica o pesquisador André Monteiro, engenheiro sanitarista da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pequisador do Aggeu Magalhães.

Um exemplo disso foram as recentes epidemias de zika e chikungunya, lembra o pesquisador, cuja população mais atingida foi a que vive em áreas de morro e sem condições de saneamento. A doméstica Severina Silva, 54 anos, sofre até hoje com as dores da chikungunya. “Eu tive, minha filha também. Passei um mês de cama e meu joelho ainda dói. Por aqui, pouca coisa mudou. Quando chove, ainda alaga tudo, tem muito mosquito”, conta ela, que é moradora do bairro do Pilar, um dos que estavam sempre no topo do ranking de notificações entre 2015 e 2016, quando houve a epidemia.

O índice de cobertura de esgotamento sanitário no Recife é de 45%, diz a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa). Hoje, a cidade é uma das 15 incluídas no programa Cidade Saneada, uma parceria público-privada que pretende ampliar essa cobertura em 90% em 19 anos. O projeto já recuperou 150 unidades operacionais existentes. Bairros como Ipsep e Imbiribeira receberam o sistema. Estão em andamento obras nos Torrões. As próximas áreas contempladas serão Cordeiro, Arruda, Boa Viagem e Setúbal. Com a finalização dessas obras, a cobertura será ampliada para 55%. Nos próximos 10 anos, a meta é ampliar para 85%. 
 
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