Igarassu

Festival em Cuieiras celebra identidade afrodescendente

Evento acontece neste sábado e domingo e conta com atrações culturais e oficinas

Publicado em: 06/04/2018 22:46 | Atualizado em: 07/04/2018 08:39

Arlindo Calixto de Oliveira, 74 anos, tocava tambor acompanhado por amigos e amigas. Foto: Peu Ricardo/DP
 As sambadas de coco sob a luz da lua varavam a madrugada naquela terra tomada por sítios. Hoje, as noites de música e dança são apenas lembrança para os adultos do lugar. Arlindo Calixto de Oliveira, 74 anos, tocava tambor acompanhado por amigos e amigas. Muitos agora estão mortos. Ele e seu coco são como raridade sonora. Resquícios de uma época de expressão cultural transbordante. Em Cuieiras, povoado de Igarassu a 35 km do Recife, restam apenas 600 moradores onde um dia habitaram três mil. Pessoas como Arlindo, muitas delas descendentes de escravos, cujas terras nunca foram reconhecidas como de quilombo. A história incomum do povo de Cuieiras despertou em apaixonados pela região uma ação de afirmação identitária no povoado. Neste final de semana, acontece mais um resultado positivo desse movimento. O Celebração Cuieiras comemora com música, oficinas e outras expressões culturais mais de três séculos de história daquele povo, marcado por um doloroso processo de resistência e de relação de sobrevivência com a terra.

Arlinda Maria da Conceição lembra, com saudade, das noites de festa. Foto: Peu Ricardo/DP.
Na programação aberta ao público e gratuita, Arlindo assume sua posição no Coco Caieira, junto com mais quatro parceiros antigos. "Comecei a brincar desde que me entendi por gente. Brincava até na luz de candeeiro, porque aqui não tinha energia elétrica quando eu era criança e meus avós batiam no bombo. Mas faz muito tempo que não tem mais sambada", lamenta. A companheira dele, Arlinda Maria da Conceição, 66, é quem conta das noites de festa. "Tinha Maria Pequena que puxava o samba e os outros tinham que responder. E o bombo batendo."

Cuieiras é um povoado isolado. A maioria da população vive da pesca no Rio Timbó. O transporte público se resume a dois ônibus. Um para os estudantes. Outro para os moradores. Ambos com horários contados. No sábado, só há ônibus até o final da manhã. Além disso, o lugar conta apenas com uma escola municipal, um posto de saúde, duas igrejas (uma católica e outra evangélica) e duas ruas: a de Cima e a de Baixo. "Passei oito anos da minha vida andando a pé para ir à escola. Quase uma hora para ir e uma para voltar. O ônibus somente chegou há dois anos", conta Jucélio Calixto de Oliveira, 39. Para ele, que assistiu a expressão cultural dos mais antigos, os jovens do povoado não querem saber dessa tradição. "Preferem o brega rasgado", diz.

Na casa de Judite Maria da Paixão, 87, o calor sob a telha Brasilit é de ferver. Ela é uma das moradoras mais antigas do lugar e hoje está de cama depois de perder uma das pernas. Trabalhou carregando pedras para fazer cal desde os 10 anos para ajudar no sustento da família. Diz temer a violência dos tempos atuais. "Os novos não querem lazer. É violência demais. Não é como no meu tempo de criança", lembra.

Judite é uma das moradoras mais antigas do lugar e hoje está de cama depois de perder uma das pernas. Foto: Peu Ricardo/DP
Cansada do trabalho pesado iniciado quando ainda era muito criança, Maria de Lurdes de Farias, 78, também está de cama. Há dez anos. Tem fortes dores nas pernas e uma hérnia. Conta com a ajuda do marido, com quem vive há vinte anos, para continuar viva. Mora na única casa de taipa sem reboco de Cuieiras. Um tipo de construção herdado de seus antepassados africanos. "Trabalhei demais. Lavei roupa de ganho, cozinhava, tomava conta de criança. Hoje não aguento andar", lamenta.

Maria de Lurdes de Farias, 78 anos. Foto: Peu Ricardo/DP
Damiana Maria da Silva, 71, é pescadora desde muito jovem. Criou sozinha onze filhos depois do abandono do marido. Assim foi com a mãe dela. "Só saio de Cuieiras morta, de dentro daquela casa", diz, apontando para o imóvel onde vive. Na época das festas, dançava, cantava. "Só não faço mais hoje porque não tem. Nesse final de semana, vou dançar. Os ossos não prestam mais, mas eles vão prestar nesses dias", brincou. Em Cuieiras, mesmo com a falta de estrutura e isolamento, não há sequer uma casa para vender. A ligação com as raízes parece falar mais alto.

Damiana é pescadora desde muito jovem. Foto: Peu Ricardo/DP
O historiador e artista plástico Odilo Brandão, mais conhecido como Firo Gravura, tem uma relação de amor com o lugar. Durante a graduação em história, passou dois anos conversando com os moradores, principalmente os mais antigos, e pesquisando registros. O resultado é o livro Povoado de Cuieiras: história e paisagem. A publicação tem 270 páginas e conta a origem, trajetória histórica e traz um olhar sobre as paisagens econômica, sociocultural, urbano-rural e sobre a composição do povo do lugar. "Eles próprios não se reconhecem como quilombo. Com esse movimento cultural, queremos despertar essa identidade e chamar a atenção do governo para esse reconhecimento. Hoje eles estão desprotegidos da especulação imobiliária."

Cuieiras, conta Firo, teve uma intensa produção de cal por conta de uma jazida de pedreira calcária. A exploração se deu primeiro pela mão de obra escrava e depois pela semi-escrava. O lugar chegou a ter duas empresas de produção de cal. A indústria durou até a década de 1930. O negócio atraia gente até da Região Metropolitana do Recife, mas com seu fim e a chegada da fábrica Poty, em Paulista, foi registrado o primeiro êxodo de Cuieiras. O segundo êxodo, conta Firo, aconteceu com o fechamento da Poty, no começo da década de 1980. "Muita gente partiu para uma fábrica nova na Paraíba. O terceiro êxodo se dá no início dos anos 2000, com a violência urbana. Muitas casas foram abandonadas por conta de assaltos", historia.

Firo relata que até a década de 1950, a presença de expressões afro-descendentes era marcante. A cada final de semana, diz, havia até seis sambadas no povoado, além de cortejo de maracatu e mamulengo. A chegada de um templo protestante ocasionou um certo esvaziamento da prática. Além disso, os êxodos também aumentaram a ausência das expressões culturais. "Na década de 1990, já não se via mais sambadas. A única cultura que resiste há mais de cem anos é a Catirinas de Cuieiras."

De acordo com o historiador, a população afrodescendente do lugar sofreu perseguição grande por parte da polícia. Uma delas, conta, foi marcante e aconteceu em abril de 1890. "A polícia chegou ao povoado, arrastou famílias para a rua, batendo nelas. Havia perseguição por conta da prática cultural, mas os registros da época não falam o motivo da violência. Por isso, escolhemos abril para trabalhar como mês de resistência e afirmação do povoado", justificou.

Como chegar:

O caminho é pela BR-101 Norte. Logo após Cruz de Rebouças. virar à direita na PE-14 (Estrada de Nova Cruz). Em seguida, após dois quilômetros, virar à direita, na Estrada de Cuieiras. Nela será percorrido cerca de quatro quilômetros em estrada de terra até chegar ao povoado. A partir do início da Estrada de Nova Cruz, não há transporte público

PROGRAMAÇÃO E OFICINAS

Programação Cultural

Sábado, 07 de Abril

9h-12h e 14h - 16h - Oficinas

14h - 16h: Mostra de Filmes

Local: Escola Ana Caldas.

16h30 - 17h30: Teatro de Boneco

Atração: Mestre Antero

17h30 - Apresentação musical

Atração: Coco Caieira

18h - Teatro de rua

Atração: Catirina entre dois Amores, da Trupe Circuluz Cia. de Artes

18h45 - Apresentação musical

Atração: Martinho Mestre Cirandeiro

19h30 - Cortejo pelo arruado do povoado e apresentação no palco

Atração: Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu

21h - Apresentação musical

Atração: Batuque

21h45 - Apresentação musical

Atração: Coco Juremado e Dona Lia do Coco

22h30 - Performance poética

Atração: Cupim Boi Cabeça

22h45 - Apresentação musical

Atração: Família Bezerra

9h - 23h30: Poesia incidental

Local: Em todos os locais de realização da manifestação

18h30 - 00h - Projeção de fotografias (Povoado de Cuieiras)

Local: Casa Cuieiras

Domingo, 08 de Abril

09h30 às 11h30: Mostra de Filmes

9h-12h e 14h -16h - Oficinas

17h - Cortejo de encerramento

Atrações

- Cupim Boi Cabeça

- Catirinas (Brincantes mascarados do Carnaval de Cuieiras)

Programação das oficinas

Oficina 1: Dança Popular

Na ocasião serão trabalhados os passos básicos de danças populares de Pernambuco, com destaque para o Coco e o Maracatu de Baque Virado.

Público alvo: moradores de Cuieiras maiores de 10 anos (prioridade: alunos da Escola Ana Caldas).

Horários: sábado, dia 7 (9h - 12h e 14h - 16h).

Local: Escola Ana Caldas. Facilitadora: Yasmim Rocha

Oficina 2: Leituras e Memórias

Nesta oficina os participantes serão instigados a assumirem ora o lugar de poetas ou cantadores, ora a se apresentarem como fontes de histórias ou como produtores de literatura oral e escrita. Dessa forma, abrir espaço para a fluência de narrativas, valorizando a expressão dos narradores, poetas, cantadores, memorialistas da comunidade.

Público alvo: moradores de Cuieiras com idade a partir de 16 anos.

Horários: domingo, dia 8 (14h30 - 16h30)

Local: Escola Ana Caldas. Facilitadora: Carminha Bandeira, com apoio de Rogério Bezerra

Oficina 3: Contação de Histórias

Na oportunidade serão trabalhados o exercício da contemplação, o imaginário e o interesse pela literatura, além de buscar contribuir para a afirmação étnica afrodescendente.

Público alvo: crianças, moradoras de Cuieiras, com idade inferior a 8 anos (prioridade: alunos da Escola Ana Caldas).

Horários: sábado, dia 7 (14h - 16h)

Local: Escola Ana Caldas. Facilitadoras: Adriana Melo e Cenilda Siqueira

Oficina 4: A Caixa Mágica

Neste encontro será trabalhada a técnica da construção da “Caixa Mágica”, técnica de captação de imagens.

Público alvo: moradores de Cuieiras com idade de 7 a 12 anos (prioridade: alunos da Escola Ana Caldas).

Horário: domingo, dia 8 (10h30 - 11h30).

Local: Escola Ana Caldas. Facilitador: Daniel Pereira

Oficina 5: Projeto Cafuné

Durante o encontro serão trabalhadas práticas pedagógicas de educação infantil que possam vir a contribuir para o fortalecimento do processo de afirmação da identidade e da autonomia dos grupos afrodescendentes, além de contribuir para a elevação da autoestima desse grupo, bem como fortalecer o respeito à diversidade étnica no ambiente escolar.

Público alvo: professores da educação infantil (prioridade: professoras da Escola Ana Caldas e da educação infantil da rede municipal de ensino de Igarassu).

Horários: sábado, dia 7 (9h - 12h).

Local: Escola Ana Caldas. Facilitadoras: Adriana Melo e Cenilda Siqueira

Oficina 6: Mostra de Filmes (Cineclube Literando)

Nestes encontros serão realizadas sessões de exibição de filmes, visando potencializar o exercício da reflexão sobre o audiovisual e abrir espaços para o aprofundamento da reflexão sobre o conceito de leitura fílmica, estimulando a formação do público-plateia. Visa, ainda, contribuir para a sensibilização do olhar e estimular a reflexão e o interesse pela linguagem do cinema.

Público alvo: moradores de Cuieiras com idade entre 8 e 16 anos (prioridade: alunos da Escola Ana Caldas).

Horários: sábado, dia 7 (14h - 16h) e domingo, dia 8 (9h30 - 11h30).

Local: Escola Ana Caldas. Facilitadores: Rogério Bezerra e Daniel Pereira

Oficina 7: Catirinas

Nesta oficina será gerado um ambiente de livre confecção de máscaras de Catirina, a partir de materiais diversos, comumente utilizado em Cuieiras para esse fim, como papelão, borracha, tecido, tinta, dentre outros. Dessa forma, espera-se contribuir para a preservação e o fomento do brincante Catirina, ocorrência mais que secular no Carnaval de Cuieiras.

Público alvo: crianças e jovens com idade entre 8 e 14 anos (prioridade: alunos da Escola Ana Caldas).

Horários: domingo, dia 8 (14h - 16h30).

Local: Escola Ana Caldas. Facilitador: Rodrigo Cruz
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