DIREITOS HUMANOS O lugar mais frio do Recife ainda é a rua Moradores de rua sofrem ainda mais com temperaturas baixas de julho

Por: Marcionila Teixeira

Publicado em: 08/07/2017 07:59 Atualizado em: 08/07/2017 18:09

José Reis, 52 anos. "Quando chove em uma marquise, troco de lugar. E passo a noite assim. Durmo pouco". Foto: Teresa Maia/DP (José Reis, 52 anos. "Quando chove em uma marquise, troco de lugar. E passo a noite assim. Durmo pouco". Foto: Teresa Maia/DP)
José Reis, 52 anos. "Quando chove em uma marquise, troco de lugar. E passo a noite assim. Durmo pouco". Foto: Teresa Maia/DP

Existe um lugar no Recife onde a sensação de frio é verdadeiramente cruel. Lá falta exatamente tudo para o enfrentamento das temperaturas mais baixas de julho. Seus moradores sobrevivem sem agasalho suficiente. Também não dispõem de paredes e teto para impedir a entrada dos ventos e da chuva. Para o povo de rua, o tal inverno do Recife é rigoroso. Em ambientes abertos, como as calçadas, a sensação térmica tende a cair dois graus, dizem meteorologistas. 

José, 52 anos, tem Reis no sobrenome e  mora há três décadas na rua. Vive da catação de material reciclável. É Zé Pretinho para os mais próximos. Amigo mesmo somente o cão que lhe acompanha, Mosquito. Nas noites de inverno, abriga-se em uma marquise da Rua da Palma, no Centro do Recife. Ironicamente, ao lado de um pequeno hotel. José aplaca o frio com uma manta e na companhia do animal. Naquela noite chuvosa, ambos jantaram um pacote com salsicha crua. José passa a noite semi-acordado por conta da chuva, do frio e dos perigos para quem dorme na rua. “Quando chove em uma marquise, troco de lugar. E passo a noite assim. Durmo pouco”. O desprezo de parentes levou José para a vida nas ruas. Para José, qualquer doação é bem recebida. 

Ricardo da Silva, 35 anos. "Nos dias mais frios a gente se encolhe e bate os dentes. De meia noite em diante vai ficando mais frio. Vira rotina. Tem que se acostumar". Foto: Teresa Maia/DP (Ricardo da Silva, 35 anos. "Nos dias mais frios a gente se encolhe e bate os dentes. De meia noite em diante vai ficando mais frio. Vira rotina. Tem que se acostumar". Foto: Teresa Maia/DP )
Ricardo da Silva, 35 anos. "Nos dias mais frios a gente se encolhe e bate os dentes. De meia noite em diante vai ficando mais frio. Vira rotina. Tem que se acostumar". Foto: Teresa Maia/DP


Na mesma noite fria, a poucos minutos dali, dezenas de pessoas dormem perto da Praça Dezessete, no bairro de Santo Antônio. Ricardo Correia da Silva tem 35 anos. Natural de Rio Formoso, vem para o Recife toda semana para trabalhar como vendedor de pipoca. O dinheiro pouco não lhe deixa outra alternativa. Dorme pelo menos três noites na calçada do Fórum Thomaz de Aquino antes de voltar para a terra natal, onde deixou a companheira grávida. “Nos dias mais frios a gente se encolhe e bate os dentes. De meia noite em diante vai ficando mais frio. Vira rotina. Tem que se acostumar”, diz, envolto em pedaços de papelão e um lençol fino, já gasto. Apesar de estar ambulante, Ricardo tem experiência como auxiliar de cozinha e ajudante de pedreiro. Para Ricardo, a melhor “doação” é um emprego. 

Na mesma calçada, Luciana Alves da Silva, 29, divide um pequeno espaço com os três filhos, as gêmeas de 6 anos e o menino de 11. Cerca o “território” com caixas de papelão e lona preta para evitar os pingos da chuva. Reclama da ausência de sol para secar os lençóis atingidos pelas precipitações. Uma das gêmeas dorme envolta em uma manta de flanela ofertada por voluntários. O mesmo cobertor é usado por toda a família. Para Luciana, leite é um alimento bem vindo para as crianças. 

Ronaldo Soares, 52. "Em dia de calor, tomo até três banhos. Mas, nesse frio, estou há três dias sem banho". Foto: Teresa Maia/DP (Ronaldo Soares, 52. "Em dia de calor, tomo até três banhos. Mas, nesse frio, estou há três dias sem banho". Foto: Teresa Maia/DP)
Ronaldo Soares, 52. "Em dia de calor, tomo até três banhos. Mas, nesse frio, estou há três dias sem banho". Foto: Teresa Maia/DP
A hérnia de Ronaldo Soares de Moraes, 52, incomoda mais nos dias frios. A dor, por vezes, é tamanha que dia desses ele chorou. Morando na rua há três anos, Ronaldo também padece com hidrocele e um problema nos ossos capaz de lhe tirar a independência na mobilidade. Ronaldo já viveu dias melhores, onde abrigava-se numa pensão e vivia da venda de óculos de sol. As doenças lhe tiraram a força. Agora precisa dos companheiros da rua para sobreviver e até levantar-se da “cama” improvisada na calçada de um banco na Rua Marquês de Olinda, no Bairro do Recife. Há poucos dias, ganhou um lençol azul grosso para enfrentar o frio da rua. Há três dias, conta não tomar banho. “Em dia de calor, tomo até três banhos”, conta, enquanto tosse, resultado de uma gripe de duas semanas. Para Ronaldo, um par de muletas, um casaco e uma lona plástica são as necessidades mais urgentes.

Uma conjunção de fatores tem feito o recifense sentir mais frio, avalia a meteorologista Aparecida Fernandes. No mês de julho, o sol migra para o Hemisfério Norte dando início ao inverno nos países do Hemisfério Sul. A maior quantidade de nuvens reduz a radiação solar, cuja ausência, por sua vez, reduz as temperaturas. Um outro fator é o vento, responsável pelo aumento da sensação de frio. “Se o tempo está nublado e ainda tem vento, maior é o frio”, explica a especialista. 

O estranhamento do recifense em relação ao tempo também tem relação com os invernos anteriores, quando choveu abaixo da média. “Na realidade, a temperatura e a chuva registradas este ano estão dentro da média normal do mês. Junho é que teve registro de chuva acima da média na Mata Sul”. A novidade deste inverno, explica, é o fenômeno chamado anticiclone sub tropical do Atlântico Sul, uma espécie de furacão invertido (de cima para baixo) que se aproximou do Nordeste provocando ventos com velocidade média de 50km/h.

“O frio é muito pior na rua por conta do vento, que ajuda a tirar o calor do corpo”, pontua Aparecida. A população de rua pode procurar os Centros de Referência Especializados para População em Situação de Rua (Centro POP), da prefeitura, para ser avaliada e incluída na rede de acolhimento. São 13 casas de acolhida. Os Centro POP funcionam de segunda à sexta-feira, das 8h às 17h. Ficam nos bairros de Santo Amaro (Centro POP Glória) e Madalena (Neuza Gomes).

Moradores de rua improvisam proteção para passar a noite de frio. Foto: Teresa Maia/DP (Moradores de rua improvisam proteção para passar a noite de frio. Foto: Teresa Maia/DP)
Moradores de rua improvisam proteção para passar a noite de frio. Foto: Teresa Maia/DP

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que existiam, em 2015, 101.854 pessoas em situação de rua no Brasil. Os dados são subnotificados, já que as contagens nos municípios não são uma rotina e o próprio Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estsatística (IBGE) não contabiliza essas pessoas. Em 2014, um documento da Prefeitura do Recife apontava que a maioria do povo de rua era de homens em idade produtiva e mais da metade estava na Região Política Administrativa 1 (RPA 1), área composta por bairros do Centro. Os perfis eram diversos, incluiam pessoas com nível superior de escolaridade e estrangeiros. A invisibilidade dificulta a construção de políticas públicas para essa população. Os torna ainda mais distantes de um mundo menos frio.

Serviço:
  • Centro Pop Glória: Rua Bernardo Guimarães, n° 135, Santo Amaro.
    Próximo à biblioteca da Unicap. Telefones: 3355-3210/4254
  • Centro Pop Neuza Gomes: Rua Doutor João Coimbra, n° 66, Madalena.
    Telefones: 3355-3063/4254


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