Saúde Dançarino reinventa a loucura em espetáculo autobiográfico Experiência do ex-integrante da companhia de Deborah Colker reforça importância dos tratamentos alternativos para as doenças mentais

Por: Marcela Cintra - Diario de Pernambuco

Publicado em: 26/05/2016 16:15 Atualizado em: 26/05/2016 16:34

Dielson criou o espetáculo O silêncio e o caos depois que recebeu alta do hospital. Foto: Marcela Cintra/ Esp.DP
Dielson criou o espetáculo O silêncio e o caos depois que recebeu alta do hospital. Foto: Marcela Cintra/ Esp.DP
 

Transformar um período de crise mental em arte; traduzir as confusões psicológicas causadas por um surto bipolar em coreografia e expressão corporal. Esse foi o caminho trilhado pelo dançarino Dielson Pessôa para enfrentar o transtorno bipolar – variação de humor sem razão específica, na qual a pessoa pode passar meses em depressão ou em mania (euforia) –, com o qual foi diagnosticado seis anos atrás. A dança foi parte do tratamento de Dielson, 32 anos, mas foi também um dos gatilhos que o levaram à crise. Um dos principais dançarinos da Companhia de Deborah Colker, uma das mais respeitadas do país, onde atuou por mais de dez anos, Dielson se viu sob forte estresse após uma temporada do espetáculo 4x4.

A rotina extremamente puxada de ensaios, viagens e apresentações, aliadas a conflitos internos e externos, levaram o bailarino a um surto psicótico, no Rio de Janeiro, em 2010. Dielson acabou fazendo coisas que, mais tarde compreendeu, sempre desejou, mas que somente durante o colapso encontraram espaço e impulso para serem concretizadas. Em um dos dias da crise, chegou a ir a um quartel do BOPE para discutir a Revolução Iraniana; Viajou a Brasília para ter uma conversa com a então presidente Dilma Rouseff, com quem pretendia discutir os problemas do país, e ainda foi às ruas para protestar durante um desfile do 7 de Setembro. "Acho que isso (o surto) revelou muito do que eu sou, de fato, e do que não estava sendo dentro de um sistema de trabalho, um sistema muito repressor", opina o artista.

Após essas atitudes “políticas”, foi internado e diagnosticado como bipolar. Passou quatro dias em uma clínica de reabilitação, onde diz ter convivido com "todo tipo de gente", tornando-se, segundo ele mesmo, uma pessoa mais generosa. "Vivi uma experiência fantástica de recuperação. Eu me reestruturei intelectualmente, me reestruturei sobre o conceito do que é certo e
errado, o que é bom. Vivi com pessoas drogadas, esquizofrênicas e isso me trouxe uma capacidade de compreensão do comportamento e da profundeza das estranhezas humanas".

Quando recebeu alta e começou não só a aceitar mas entender sua doença, Dielson compreendeu que precisava de mais um fechamento, mais uma afirmação sobre quem era e como explicar isso a outras pessoas. Daí surgiu a ideia (e a necessidade) de fazer um espetáculo autobiográfico, contando a história do surto. Assim nasceu O silêncio e o caos". Contra a indicação do seu médico na época, que acreditava que não seria bom para Dielson reviver situações ruins do passado, o bailarino insistiu na ideia e montou a coreografia. Reviver tecnicamente sua "loucura" faria com que ele compreendesse mais os motivos desses problemas e, também, se aprofundasse como artista. "A arte serve para isso, para te provocar", diz.

 

Coreografia narra a história do surto do autor, traduzindo o impalpável para o concreto do palco. Foto: Marcela Cintra/ Esp.DP
Coreografia narra a história do surto do autor, traduzindo o impalpável para o concreto do palco. Foto: Marcela Cintra/ Esp.DP
 

A missão de traduzir o impalpável para o mundo mais concreto deu certo. "Na verdade, a gente nunca passa tudo. A gente tenta passar. Mas eu sou uma pessoa que tento comunicar essas guerras, essas confusões de maneira muito direta, por meio de gestos, danças, de palavras". A leitura estética do seu transtorno mental ajudou o bailarino a se entender e a se aceitar. É certo que cada sujeito é único, mas o caso de Dielson é um bom exemplo da importância dos métodos alternativos no tratamento das doenças psicológicas.

Ignorância e isolamento
A sociedade sempre impôs regras de convivência aos indivíduos que nela vivem. Assim como estabeleceu leis, conceitos de moral e ética, de certo e errado, na busca de uma convivência harmoniosa e simbiótica. O ser humano que não se encaixa nesses "acordos" e imposições, seja por motivos de transgressão consciente ou questões psicológicas que fogem às escolhas racionais do indivíduo, em geral, tende a causar estranhamento por parte daqueles que se
submetem a elas. A figura do louco, subversor de uma ordem social, por ser "desconhecido", assusta, e, durante séculos, foi tratada de uma única forma: o isolamento.

Na Europa da Idade Média, a falta de conhecimento científico sobre as doenças psicológicas levou à construção de inúmeras casas de internação, afastadas dos centros das grandes cidades, onde pessoas bipolares, esquizofrênicas e que sofriam de quaisquer outros transtornos mentais eram jogadas. A intenção era, acima de tudo, afastá-los do convívio social para manter a ordem. A reprodução dessa "solução" ao longo do tempo, no entanto, acabou por levar à “institucionalização da loucura” e ao consequente apagamento das particularidades e individualidades dos sujeitos. Outro produto da ignorância. Esse modelo de tratamento atravessou os séculos, com avanços pontuais e espaçados.

No Brasil, a partir dos anos 1970, a reforma psiquiátrica introduziu a ideia de humanização dos tratamentos das doenças mentais, levando à ressignificação da loucura. Esse novo paradigma trouxe uma nova maneira de pensar a saúde mental, nos âmbitos social e político, ao salientar a importância do retorno do indivíduo ao convívio com a família e a reinclusão deste no meio social. À medida em que avançam as discussões e os estudos, ganham força os tratamentos humanizados e os métodos alternativos de recuperação, e, por tabela, a quebra de preconceitos contra os pacientes.

 

Dielson fez uma leitura estética do transtorno mental que sofreu em um mergulho de autoconhecimento. Foto: Marcela Cintra/ Esp. DP
Dielson fez uma leitura estética do transtorno mental que sofreu em um mergulho de autoconhecimento. Foto: Marcela Cintra/ Esp. DP
 

A vida como ela é
Amaury Cantilino, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em neuropsiquiatria e ciências comportamentais, lembra que esses tratamentos vêm para somar, considerando que atualmente é cada vez menos necessária a internação de pacientes. Atualmente, defende-se a psicoterapia como tratamento para os estresses psicológicos, incluindo os principais desencadeadores do transtorno bipolar, por exemplo. “Realizar exercícios aeróbicos três vezes por semana, durante 40 minutos, também ajuda", afirma Cantilino.

As mudanças na forma de tratamento das doenças mentais, nos últimos 20 anos, terminaram repercutindo também na maneira como a sociedade passou a encarar os pacientes. O surgimento dos CAPs (Centro de Atenção Psicossocial) possibilita uma opção intermediária de atendimento, pois já não requer a internação integral da pessoa. Nestas clínicas, o paciente chega pela manhã e volta para casa à tarde, e a frequência de visitas ao lugar depende do caso de cada um. Esse trânsito entre a clínica e a casa (ou as ruas) já apresenta vantagens pelo simples fato de possibilitar a circulação do paciente no meio social, durante o tratamento num centro médico. “Nos CAPs, o acompanhamento é muito mais completo, com psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais e fisioterapeutas”, explica Cantilino.

A possibilidade de usar a arte como ferramenta de aceitação e autoconhecimento, como fez o bailarino Dielson, não beneficia apenas aqueles que apresentam transtornos psicológicos. Sua importância também tem um caráter social ao escancarar que essas doenças existem e precisam ser enfrentadas com menos estranheza e mais entendimento por parte da população. "A sociedade superestima os riscos da pessoa ser agressiva. O preconceito em relação a quem tem o transtorno experimental acaba fazendo com que as pessoas não se aproximem e não conheçam o outro", afirma o neuropsiquiatra.

 

Dielson se viu sob forte estresse após uma temporada do espetáculo 4x4, da Companhia Deborah Colker, da qual fazia parte. Foto: Marcela Cintra/Esp. DP
Dielson se viu sob forte estresse após uma temporada do espetáculo 4x4, da Companhia Deborah Colker, da qual fazia parte. Foto: Marcela Cintra/Esp. DP
 

Amaury Cantilino também destaca a campanha Eu sou mais, lançada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), na qual artistas e pessoas públicas revelam ser portadoras de doenças psiquiátricas. Para o médico, a ideia é boa “pois faz com que a sociedade veja que pessoas de seu convívio têm tais condições, causando, talvez, menos receio e criando uma aproximação ou até mesmo uma identificação", opina. No final das contas, o objetivo é informar a sociedade o que são as doenças psicológicas, garantindo aos que sofrem desses transtornos o respeito ao seu silêncio e ao caos de cada um.



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