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Saúde Pernambuco é o campeão nordestino de discriminação nos serviços de saúde Mais de 769 mil pessoas já sofreram preconceito quando procuraram os serviços de saúde pernambucanos

Por: Alice de Souza - Diario de Pernambuco

Publicado em: 01/08/2015 15:00 Atualizado em: 28/09/2015 19:10

Moradores da ocupação Esperança I, no Espinheiro, reclamam a falta de atendimento na Unidade de Saúde da Família próxima à residência deles. (Rafael Martins/Esp.DP/D.A Press)
Moradores da ocupação Esperança I, no Espinheiro, reclamam a falta de atendimento na Unidade de Saúde da Família próxima à residência deles.
Nilton Oliveira, 18 anos, não tem semelhança com o estereótipo de garoto dessa idade. Não frequenta festas nem está se preparando para prestar vestibular. O atual sonho dele tem outra proporção. Sem a visão do olho esquerdo há quatro anos, depois de um acidente, só precisa de uma assinatura médica para validar o laudo e receber a carteirinha de livre acesso ao transporte público. No posto de saúde, foi chamado de “cego doido” e saiu sem a rubrica tão desejada.

Situações como a enfrentada por ele são mais comuns do que se imagina. Um gargalo entre a legislação que prega um serviço universal e a realidade reflexo dos preconceitos arraigados na sociedade brasileira. Em Pernambuco, mais de 769 mil pessoas têm relatos semelhantes ao de Nilton, mostrou a Pesquisa Nacional de Saúde, encomendada pelo Ministério da Saúde. Os números empurram o estado para o 10º lugar em casos de discriminação na saúde. Se considerado só o Nordeste, Pernambuco sobe para a liderança.

O adolescente Nilton é morador da ocupação “Esperança I”, no nobre bairro do Espinheiro, Zona Norte do Recife. Entre os edifícios modernos e luxuosos da vizinhança, ele divide um casa abandonada com a esposa e outras 31 famílias. A todos eles, o direito de ser atendido no posto de Saúde União das Vilas, a duas quadras do imóvel, foi negado seguidas vezes.

“Eles disseram que a gente faltava demais e, por isso, não iríamos ser mais atendidos. Só que isso é desculpa”, lamentou Nilton, que vive com o salário de aposentado e gasta contados R$ 4,90 para ir à igreja de ônibus.


A maioria dos moradores da ocupação “Esperança I” tem o mesmo perfil: baixa renda, pouca escolaridade e cor parda ou negra. Eles são a imagem real do espelho das estatísticas da PNS. O levantamento do Ministério da Saúde aponta, também, que eles somam de forma preocupante em Pernambuco. O estado ocupa o primeiro lugar no Nordeste de pessoas negras e pardas com relatos de situação discriminatória nos serviços de saúde pública e privada.

Entre os negros, 16,7% já afirmaram ter sofrido alguma situação de preconceito ao buscar atendimentos. Entre a população parda, são 11,8%. O contraste é estabelecido em pontos percentuais com a população branca, na qual 10,3% dos entrevistados relataram casos de preconceito.

“O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Durante séculos, fomos escravocratas e não resolvemos esse problema. O racismo e o preconceito ainda são muito organizados na população”, explicou o médico e professor de sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Artur Perrusi.

“O sistema de saúde está inserido nessa sociedade. Em um país em que a desigualdade é uma questão estrutural, não é surpresa encontrar relatos desses. É um reflexo da sociedade”, acrescenta.

Mesmo não sendo maioria, os percentuais de discriminação são considerado inaceitáveis pelos pesquisadores da área. “A discriminação impede o acesso das pessoas, afeta a questão do cuidado, da adesão ao tratamento, o estabelecimento de vínculo entre o usuário e o profissional”, alerta o professor do Departamento de Saúde pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do tema há 10 anos João Luiz Dornelles Bastos.

 

 

Cássia Alves sofreu discriminação e fez rap para combater o preconceito. (Rafael Martins/Esp.DP/D.A Press)
Cássia Alves sofreu discriminação e fez rap para combater o preconceito.
Mulheres sofrem mais discriminação do que os homens

Cássia Alves, 28 anos, estava grávida do terceiro filho quando entrou no posto de saúde, no Espinheiro, pela primeira vez. A meta dela era fazer exames rotineiros, como aferir pressão, medir peso e altura. Em um dos procedimentos, as palavras ditas pelo médico - que ela prefere não revelar - dilaceraram a autoestima de Cássia. Negra, pobre, gorda e mulher.

Em Pernambuco, 13,7% das mulheres relataram à pesquisa alguma situação de preconceito, quatro pontos percentuais a mais do que nos homens. Na prática, quase 500 mil Cássias. “Saí de lá arrasada, humilhada. Não importa o que tenhamos feito, só em dizer que não vamos ser atendidos eles estão sendo racistas”, diz Cássia.

A soma gênero e raça é um dos principais condicionantes, no Brasil, na hora do atendimento no serviço de saúde. “O racismo é um dos determinantes da qualidade de vida, de nascimento, adoecimento e morte da população negra. A ideologia racista oferece um atendimento de menor qualidade, menor tempo de informações para essas pessoas. Baixa a estima e, consequentemente, a imunidade”, explicou a coordenadora da Política de Saúde da População Negra do Recife, Sony Santos. No Recife, entre 2001 e 2013, 74% dos óbitos maternos ocorreram em mulheres negras.

“Há uma ideia permeada de que a mulher negra é forte, então aguenta a dor, o peso. É claramente racismo institucional”, pontuou a coordenadora do Grupo Curumim, Paula Viana.

A Secretaria de Saúde do Recife afirmou que “atitudes discriminatórias não fazem parte da rotina da Equipe da Saúde da Família” e que o médico orientou Cássia quanto aos hábitos de vida saudável para evitar a obesidade. Com relação aos outros casos de discriminação sofridos pelos moradores da ocupação Esperança I, o órgão afirmou que um dos médicos responsáveis pela unidade está de férias e explicará, em relatório, o ocorrido quando retornar às atividades.

O Recife vem realizando encontros de sensibilização e capacitação e atualização com todas as áreas técnicas e trabalhando o tema da discriminação de forma transversal nas políticas estratégicas de saúde municipal.

Serviços especializados em saúde da mulher


Centro Integrado de Saúde Amauri Medeiros - CISAM
Rua Visconde de Mamanguape, s/n, Encruzilhada, Recife, PE,
CEP 52030-010 (ponto de referência: próximo à Caixa Econômica
Federal).
Tel.: (81) 3182 7717 / 3182 7718

Serviço de Atendimento à Mulher Wilma Lessa
Hospital Agamenon Magalhães
Estrada do Arraial, 2723 - Casa Amarela
(81) 3184.1740

Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - IMIP
Rua dos Coelhos, nº 300, Boa Vista, Recife, PE, CEP 50070-550.
Tel.: (81) 2122 4707.

Pesquisas e denúncias ainda são poucas

Apesar de quase 800 mil pessoas terem uma história de discriminação para contar referente ao sistema de saúde em Pernambuco, poucas delas procuram os órgãos oficiais para fazer denúncias. Nem a promotoria de Saúde do Ministério Público nem o Conselho Regional de Enfermagem de Pernambuco (Coren-PE) têm investigações em curso. No Conselho Regional de Medicina (Cremepe), nove investigações foram abertas, desde 2011, para apurar preconceitos sofridos por pacientes.

O número representa apenas 3,6% do total de procedimentos investigatórios abertos no órgão nos últimos quatro anos. De todos os casos de discriminação denunciados ao Cremepe, um foi no ano passado. Oito deles ocorreram entre 2011 e 2012. Dois foram analisados e encerrados. Os motivos, entretando, não foram revelados pelo conselho.

“Se formos analisar pelos números, é um percentual baixo. Mas o código de ética médica deixa claro, nos itens fundamentais, que o profissional deve atuar de forma absolutamente isenta em relação à etnia, preferência sexual, cor e qualquer outro fator”, explicou o vice-corregedor do Cremepe, Roberto Tenório.

Há uma corrente na medicina, explica ele, para ampliar o debate sobre a ética ainda na graduação. “O foco do ensino é na técnica e ciência.” Isso facilita, de acordo com os especialistas, que os profissionais tratem o tema com naturalidade e tenham dificuldade de reconhecer atos discriminatórios.

Para o professor da UFSC João Luiz Bastos, também faltam pesquisas acadêmicas na área. “Não há pesquisas sistemáticas e periódicas. Então, não podemos comparar os indicadores e perceber a tendência temporal dos casos de discriminação na saúde."

 (O líder comunitário Elizeu Silva tentou argumentar com alguns médicos, mas só parte deles atendeu o pedido de atendimento.)
Secretaria Estadual de Saúde cria grupo de trabalho para enfrentar o problema

Os moradores da Esperança I assistiram, sem poder fazer muito, as portas de entrada da saúde pública fecharem para eles com xingamento, consultas rápidas e humilhações. A exceção, são atendimentos odontológicos e pediátricos. “Não temos onde morar e, por isso, nem atendimento médico. Eles dizem que moramos no imóvel onde seria o posto de saúde”, disse o líder comunitário Elizeu Silva, 37.

Falhas no acolhimento também são identificadas nos serviços de média e alta complexidade, inclusive na implementação de políticas voltadas para a saúde do idoso, da população LGBT e dos deficientes. Por isso, um grupo de trabalho foi formado na Secretaria Estadual de Saúde (SES) para intensificar as estratégias.

Fazem parte do GT representantes responsáveis pelas áreas de populações negra, LGBT e idosa, além de deficientes, da secretaria. Semanalmente, o grupo se reúne e, até setembro, irá apresentar um projeto à secretaria.

Um dos grandes hospitais do estado será escolhido para iniciar as atividades. “Percebemos a fragilidade com que algumas populações estão sendo acolhidas no serviço. Queremos estruturar os hospitais para serem um espaço livre de preconceito. Toda pessoa, independente da especificidade, deve ter um atendimento igualitário”, explicou o coordenador da Política de Saúde Integral da População LGBT da SES e integrante do GT, Jair Brandão.




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