Cotidiano de transtornos Os sete infernos dos passageiros de ônibus do Grande Recife

Por: Larissa Rodrigues - Diario de Pernambuco

Por: Tânia Passos - Diário de Pernambuco

Publicado em: 20/06/2015 15:00 Atualizado em: 19/06/2015 21:35

As dificuldades dos passageiros de ônibus da Região Metropolitana do Recife (RMR) são tantas que é possível enumerá-las no que poderia se chamar ‘lista do desespero’. Na última semana, a população assistiu perplexa a mais um capítulo trágico dessa rotina. Harlynton dos Santos, 20 anos, caiu do coletivo quando tentava embarcar na linha Imip/Tancredo Neves, no Cais de Santa Rita. Teve o mesmo destino de Camila Mirele Pires, 18, que quarenta dias antes viajava próximo à porta do Barro/Macaxeira e foi arremessada para fora do coletivo.

Acidentes ou mortes anunciadas pela precariedade do sistema? Pode-se afirmar que nunca mais vão acontecer? Passageiros dizem que não e justificam apontando os tormentos que enfrentam diariamente. A reportagem do Diario foi às ruas e comprovou, entre os inúmeros problemas dos ônibus, os sete maiores. Constam na lista superlotação e paradas queimadas. Responsáveis pela gestão do sistema, o Grande Recife Consórcio de Transportes e o Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros (Urbana-PE) defendem a ampliação do número de corredores exclusivos para o transporte público como forma de amenizar os problemas desse inferno diário.

 (Teresa Maia/DP/DA Press)

Superlotação sem tempo de ter fim

O Recife já tem 30% a mais da frota de ônibus que precisaria para fazer as mesmas viagens. O dado parece irreal para quem enfrenta a superlotação. São dois milhões de usuários no sistema de 3 mil ônibus. O tempo que os coletivos perdem no trânsito reflete no aumento do intervalo das viagens entre 30 a 40 minutos e consequentemente no número de passageiros acumulados nas paradas e terminais. Sem espaço e encostado na porta, o pedreiro Samuel Lopes, 33 anos, em pé no Barro/Macaxeira, resume em poucas palavras o cotidiano. “Todo dia é essa bagunça”. Manter a regularidade no horário é uma necessidade ainda distante de ser atingida.

“Todo mundo fala em priorizar o transporte público, mas nada é feito de fato”, criticou o coordenador regional da Associação de Transporte Público (ANTP), César Cavalcanti. Para os especialistas e os órgãos gestores não existe outra equação. Somente na capital pernambucana a frota circulante ultrapassa um milhão de veículos nas mesmas vias compartilhadas pelos ônibus. As vias exclusivas podem ser contadas nos dedos: os corredores Norte/Sul e Leste/Oeste, em obras, e com trechos mistos. E os 21,4km de faixa azul distribuídos na Mascarenhas de Moraes, Herculano Bandeira, Domingos Ferreira e Rua Cosme Viana, em Afogados. O plano de expansão inclui, até o fim  do ano, Avenida Recife e Real da Torre.

 (Guilherme Veríssimo/DP/DA Press)

No calor e no aperto

A capital pernambucana é quente por natureza. Nos dias de verão, a temperatura média é de 29 graus. No inverno, a sensação térmica reduz cerca de três graus. Mas já houve um inverno quase “polar” - para a realidade do Nordeste -  com inacreditáveis 15 graus, no ano de 1965, segundo a Agência Pernambucana de Águas e Climas (Apac). Meio século depois, o calor só aumenta. Agora imagine dentro de um ônibus lotado? “É uma rotina exaustiva. A pessoa já chega no trabalho cansada, toda suada”, contou a educadora Valquíria Duarte, 42 anos, que costuma pegar a linha Barro/Macaxeira.

A climatização do transporte público da RMR foi um dos itens mais polêmicos da licitação do sistema. O primeiro edital, que previa ar-condicionado para todos os ônibus, foi esvaziado. Nenhuma empresa se inscreveu. No segundo edital, o governo reduziu a climatização para a frota do Sistema Estrutural Integrado (SEI). Ou seja, para os ônibus que fizererem integração nos 25 terminais previstos no sistema. Desses, quatro ainda estão em obras. Mas o fato é que a climatização só chegou aos BRTs.

Atualmente 42 ônibus circulam refrigerados, ou seja menos de 2% da frota. De acordo com o Grande Recife Consórcio, somente com a segunda etapa da licitação, sem previsão, será exigida a climatização dos ônibus do SEI.
 (Guilherme Veríssimo/DP/DA Press)

O desabrigo das paradas

Com quase seis mil paradas de ônibus na RMR e cinco tipos diferentes delas, algumas sem tipo nenhum, o fato é que os abrigos para os usuários de ônibus deixam muito a desejar. Há lugares onde um poste serve como indicativo de parada. Mas até mesmo nos locais melhor estruturados, o desconforto é também percebido. Em plena Avenida Conde da Boa Vista, um dos principais corredores de tráfego, os abrigos são quase de “enfeite”. Não protegem nem do sol, nem da chuva. “E quando chove, as cadeiras ficam encharcadas”, revelou o atendente de telemarketing, Elias Pessoa Monteiro, 32 anos.

De acordo com órgão que gerencia o transporte público na RMR, as especificações das paradas dependem dos espaços disponíveis. “Existem regras de acessibilidade que não podem ser quebradas. Cada parada possui largura e comprimento diferente e tudo vai depender do espaço disponível na calçada”, informou o Grande Recife.

Para quem usa os equipamentos sem calçada ou só com terra nos pés, as regras de acessibilidade parecem desconectadas da realidade. Assim como o diagnóstico dos abrigos. O Grande Recife Consórcio não soube informar o número de paradas sem abrigo ou com abrigos quebrados. As denúncias podem ser feitas pelo 0800-081-0158, das 7h às 19h.
%u201CTenho duas opções para voltar da Universidade Rural para casa, Casa Amarela/Cabugá e Dois Irmãos/Rui Barbosa, mas os dois queimam parada%u201D, lamentou o estudante Felipe Wagner Silva, 26 anos. (Roberto Ramos/DP/DA Press)
%u201CTenho duas opções para voltar da Universidade Rural para casa, Casa Amarela/Cabugá e Dois Irmãos/Rui Barbosa, mas os dois queimam parada%u201D, lamentou o estudante Felipe Wagner Silva, 26 anos.

Deixados para trás

Paradas queimadas frustram e humilham quem depende de ônibus

A queima da parada talvez seja um dos piores tormentos do usuário do transporte público. A sensação de ser deixado para trás, após uma espera quase sempre longa, e, sem nenhum conforto, provoca uma frustração difícil de ser reparada em razão de uma prática cada vez mais recorrente. Talvez por isso, seja um dos itens de maior reclamação junto à Central de Atendimento ao Cliente do Grande Recife Consórcio. De janeiro a novembro do ano passado foram registradas 2,6 mil queixas de queima de paradas.

Misturados ao tráfego misto, uma cena muito comum são os ônibus fazerem fila dupla ou tripla, enquanto os usuários correm de um lado para outro para tentarem ser vistos, mas quando percebem o ônibus já partiu. “Tenho duas opções para voltar da Universidade Rural para casa, Casa Amarela/Cabugá e Dois Irmãos/Rui Barbosa, mas os dois queimam parada”, lamentou o estudante Felipe Wagner Silva, 26 anos.

A queima de parada nunca resultou em punições para os motoristas, que também são pressionados a cumprir horário. De acordo com o Grande Recife, o usuário deve entrar em contato pelo 0800.081.0158 e informar data, horário, local, nome da linha, número de ordem do ônibus, sentido da viagem, além do ponto de referência. “Com os dados é possível fazer fiscalização direcionada e autuar a operadora.” Já a Urbana garante que o assunto é tema permanente nas campanhas educativas e de formação do setor.
 (Roberto Ramos/DP/DA Press)

Insegurança dentro ou fora dos ônibus?

Quem depende do transporte público à noite precisa de algumas técnicas de segurança para escapar da violência urbana: desligar e guardar o celular em locais não visíveis, não sair desacompando, não abrir carteira em público e subir no primeiro ônibus se perceber risco de assalto. Mas às vezes o problema pode ser dentro do ônibus. De acordo com a Secretaria de Defesa Social (SDS), de janeiro a maio de 2014, foram registrados 290 assaltos a ônibus na RMR. Este ano, no mesmo período, o número já chegou a 360 ocorrências.

A analista de logística Jéssyca Almeida, 22 anos, foi vítima de assalto na linha Piedade. “Dois rapazes entraram e anunciaram o assalto. Só não levaram meu celular porque estava escondido no bolso de trás da calça e no silencioso”, contou. No entanto, para o professor de transporte público da UFPE Maurício Andrade o estigma de que o ônibus é inseguro é mais um mito. “Nunca foi feita uma pesquisa que mostre a incidência de assaltos dentro do ônibus comparando com outros lugares. Tudo fica na base do achismo”, afirmou.

A Urbana-PE disse que desde 2007 a frota é equipada com câmeras. Um levantamento feito pelo sindicato indica que houve redução de 65% no total de assaltos após a instalação de câmeras. Outro indicativo, foi a redução do dinheiro circulante nos veículos com o pagamento a partir da bilhetagem eletrônica. Já o Grande Recife Consórcio ressaltou que está reforçando a segurança nos terminais de maior demanda. O plano conta com reforço do efetivo de PMs e circulação de viaturas nas imediações de paradas e terminais.
 (Larissa Rodrigues/DP/DA Press)

Até o leitor digital engarrafa

Usuários reclamam que o equipamento falha e provoca filas no embarque


Quando o leitor biométrico chegou aos ônibus da RMR, no primeiro trimestre do ano passado, a novidade foi vista como uma revolução contra fraudes no uso do Cartão VEM. Bom para as empresas e também para o usuário, que passou a ter mais segurança em caso de roubo ou extravio do cartão. O que os usuários não contavam era que a leitura da digital provocasse engarrafamento na entrada do coletivo e muitas reclamações e empurrões.

Segundo os usuários o equipamento demora para concluir a leitura digital e sem a conclusão do processo o passageiro não consegue embarcar. A fila trava a circulação antes da catraca. “Já aconteceu umas cinco vezes de o leitor não funcionar comigo. Geralmente só pega da segunda vez que coloco o dedo”, contou o estudante do Ginásio Pernambucano Fábio Roberto do Nascimento, 16. “Nunca explicaram como usar. Ninguém sabe se tem que colocar o dedo e pressionar ou só tocar”, relatou a estudante de Administração da UFRPE Yasmim Silva Meireles, 21.

De acordo com a Urbana-PE os leitores são equipamentos de última geração, utilizados em várias cidades do Brasil e do mundo. O sindicato garante que os passageiros foram orientados sobre o uso durante o cadastro. Além disso, os cobradores receberam treinamento para orientar as pessoas. “Caso o usuário encontre problemas deve procurar o posto de atendimento do VEM para atualizar seu cadastro”, informou a Urbana.
Fiscais da cidadania tentam melhorar as relações entre os usuários e entre usuários e profissionais do setor (Urbana-PE/Divulgação)
Fiscais da cidadania tentam melhorar as relações entre os usuários e entre usuários e profissionais do setor

Gentileza de menos


Falta de educação dos próprios usuários é um dos infernos dos passageios


Na ânsia de chegar ao destino e devido a condições quase sempre desfavoráveis, o dia a dia do transporte público é uma verdadeira selva, onde os fortes ou mais “espertos” têm vez. O desrespeito ao próximo começa antes mesmo de entrar no ônibus. As filas não são respeitadas e os mais frágeis ficam para trás. Sofrendo de artrose e hérnia de disco a aposentada Maria da Conceição Lins da Silva, 57 anos, disse que já se machucou várias vezes tentando pegar o ônibus. “Eles (os passageiros) não gostam porque eu tenho carteirinha de gratuidade e me empurram.”

O desrespeito não termina aí. Dentro dos coletivos os exemplos de falta de urbanidade se multiplicam. O lugar reservado ao idoso, gestante e cadeirante, em geral é ocupado por outros passageiros. No ônibus lotado quem já pediu para segurar os livros de quem fica em pé? A gentileza é um alívio para quem não tem opção de descanso na viagem e custa muito pouco para quem faz.

A educação de menos é também sentida pelos passageiros obrigados a ouvir som alto ao longo da viagem. Em 2012 foi aprovada uma lei na Alepe para coibir o som nos transportes coletivos, mas a norma acabou não ‘pegando’ por causa da dificuldade de fiscalização.

Tentando reduzir conflitos entre os próprios usuários e profissionais, a Urbana-PE realizou pesquisa com motoristas e cobradores e identificou posturas que contribuem para o inferno diario. Fiscais da cidadania foram contratados para melhorar as relações. No mês passado, 60 deles passaram a atuar em dupla em horários e linhas diferentes verificando o uso dos espaços, informando sobre cuidados com a segurança no trajeto e incentivando o uso de fones de ouvido.



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