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Fanuel Melo Paes Barreto: O amor às palavras

Fanuel Melo Paes Barreto é professor de Língua Portuguesa e Linguística/Unicap

Publicado em: 19/02/2018 07:12

Procurando explicar os motivos da paixão pelos livros, aquilo que o escritor Nicholas A. Basbanes chamou de “suave loucura”, Rubens Borba de Moraes conta, em seu manual O bibliófilo aprendiz (4. ed., 2005), o caso de um poeta francês que, indagado certa vez por um rico banqueiro sobre a utilidade da poesia, respondeu: “Para o senhor, não serve para nada.” O renomado bibliógrafo brasileiro comenta então: “Tinha razão o poeta. Para muita gente, tudo na vida deve ter uma utilidade”.

A questão da utilidade se põe, desde sempre, aos que atuam na área das Letras, como é chamada, tradicionalmente, em nossas academias, a esfera dos estudos da linguagem e da literatura. Entre os romanos, com frequência, a atividade literária era associada ao otium, ao ócio, ao tempo livre de trabalhos. Em um mundo como o nosso, onde os feitos humanos são, cada vez mais, apreciados sob o critério da eficácia ou vantagem material, o lugar do profissional de Letras parece ameaçado. É verdade que já havia, na Antiguidade Clássica, como há, nos tempos atuais, a percepção da necessidade de se alcançar um domínio mais apurado das habilidades de expressão escrita e oral, o que garantiu a relevância do litterator, do grammaticus e do rhetor (para continuarmos com o exemplo romano) e garante, hoje, a dos professores que, nos vários níveis de escolaridade, se dedicam ao aprimoramento da capacidade comunicativa das novas gerações. Contudo, sem negar a importância desse reconhecimento, é preciso levar em conta outras razões que justificam a presença das Letras na academia e na vida cultural da sociedade.

Para tanto, seria instrutivo considerar o significado histórico dos termos “filólogo” e “filologia”. Na formação de ambos, entram os vocábulos gregos phílos (amigo), e lógos (palavra, discurso), sugerindo a ideia de apego ou amor às palavras, à linguagem. É em Platão que vamos, inicialmente, encontrar referência ao philólogos; a partir daí, identificam-se vários usos dos termos em questão, com ampla variação de acepções. A mais importante para a nossa reflexão se relaciona às atividades dos sábios helenistas ligados ao Museu de Alexandria, que se dedicaram, sob patrocínio real, ao estudo da língua e literatura gregas, desenvolvendo a investigação gramatical, a crítica textual e a exegese dos textos clássicos. Assim entendida, a filologia alcançou a Modernidade através do empreendimento humanista levado a cabo durante o período da Renascença.

Em seu livro Philology (2014), o historiador das ideias James Turner sustenta que, a partir de 1800, os estudos filológicos foram se fragmentando nas diversas disciplinas acadêmicas que conhecemos hoje como linguística, estudos literários, história, antropologia, estudos da religião, entre outras. Em suma: tudo aquilo que reclama o título de humanidades. Segundo essa tese, portanto, o núcleo de interesses intelectuais que definem a área das Letras – a linguagem e seus produtos – constituiu também o centro gerador de toda uma gama de estudos que têm seu objeto no âmbito do fenômeno humano.

Se pensarmos bem, a sugestão do historiador não chega a surpreender. Refletindo sobre as funções da linguagem, o linguista Émile Benveniste ponderou que, se fôssemos enumerá-las, precisaríamos citar “todas as atividades de fala, de pensamento, de ação, todas as conquistas individuais e coletivas ligadas ao exercício do discurso”; resumindo, disse ele, “muito antes de servir à comunicação, a linguagem serve à vida”. Indo um pouco além, talvez possamos dizer que, ao lidarmos com o que há de essencialmente humano, estaremos sempre lidando, de uma forma ou de outra, com algum aspecto da linguagem, e vice-versa. Sendo assim, a atuação do profissional de Letras não encontra relevância apenas nas vantagens materiais ou no prestígio que a eficiência comunicativa pode proporcionar, mas, sobretudo, no lugar central que a linguagem ocupa na vida de homens e mulheres, como principal meio de realização e expressão de sua humanidade.
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