Opinião Fanuel Melo Paes Barreto: O mistério da linguagem Fanuel Melo Paes Barreto é professor de Língua Portuguesa e Linguística/Unicap

Publicado em: 20/10/2017 07:10 Atualizado em:

“Creio nos mistérios razoáveis, não nos milagres brutos”, confessou o poeta argentino Jorge Luis Borges, no ensaio Elementos de preceptiva, ao considerar os motivos da “repentina glória ou do imediato fiasco de um verso”. Com a expressão “mistérios razoáves”, falava ele das causas complexas, até obscuras, mas ainda acessíveis ao exame e à compreensão do homem, falava da “tenaz conspiração de porquês para que uma rosa seja rosa”. Já com “milagres brutos”, dizia de fatos impenetráveis à análise e ao entendimento humano. Temos, assim, um poeta que insistia na via da razão para explicar algo que poetas preferem atribuir à operação do inefável ou ao desígnio da musa. Segundo ele, “a literatura é fundamentalmente um feito sintático”.

A declaração de Borges me ocorre à guisa de comparação entre sua postura e a de alguns cientistas que defendem um “novo misterianismo”. O termo (decalcado do inglês “new mysterianism”) designa a disposição filosófica em aceitar a possível existência de esferas da realidade vedadas ao nosso conhecimento, ou mesmo ao simples questionamento, devido às limitações cognitivas impostas por nossa constituição biológica. Um dos responsáveis confessos por essa “estranha heresia pós-moderna” é o linguista americano Noam Chomsky, há décadas um dos nomes mais importantes na linha de frente da investigação sobre a linguagem. Como diz ele em livro recente, What kind of creatures are we?, de 2016, “o que me é inconcebível não é critério para o que pode existir”.

Em Reflections on language, livro de 1975, Chomsky propôs a distinção entre “problemas”, que estão ao alcance da compreensão humana, e “mistérios”, que estão além desse alcance. Tal distinção é, para ele, um “truísmo”, uma obviedade. E, de fato, outros pensadores também enxergaram a existência de limites naturais na cognição humana, como se a mente estivesse programada para certas atividades e não para outras. O filósofo Charles Sanders Peirce (1839-1914), por exemplo, sustentava que a “mente do homem tem uma natural adaptação para imaginar certos tipos de teorias corretas… Se o homem não tivesse o dom de uma mente adaptada aos seus requisitos, não poderia ter alcançado qualquer conhecimento”. Conforme essa visão, tal “adaptação” promoveria o conhecimento em determinadas direções, mas o limitaria em outras, impedindo o acesso a certas teorias e ideias não admitidas pelas propriedades específicas da mente. Quando a noção é aplicada aos estudos da própria mente e de suas faculdades, a consequência é a de que talvez nunca se chegue a uma compreensão final de fenômenos como a consciência e a linguagem, a explicação estando simplesmente vedada ao entendimento.

Por outro lado, as restrições biológicas impostas à cognição humana constituem, segundo Chomsky, a base mesma para explicar fenômenos como a aquisição da língua materna, na forma como essa aquisição ocorre: bastante homogênea nos resultados e requerendo um prazo relativamente curto para a efetivação, independentemente da pobreza dos estímulos externos. A criança que adquire uma língua teria à sua disposição um limite de opções para construir a gramática mental dessa língua, o que otimizaria o processo. A existência de restrições biológicas à cognição justificaria, ainda, o esforço dos linguistas por descobrir uma Gramática Universal na aparentemente ilimitada diversidade das línguas humanas, uma vez que tal diversidade não passaria de variações superficiais de um desenho básico imposto pelas propriedades naturais da mente humana. Vemos, então, que linguistas como Chomsky, embora suspeitem que certos aspectos da linguagem estejam situados na esfera intocável dos “milagres brutos” (nos termos de Borges), insistem em tratar os fenômenos linguísticos como “mistérios razoáveis”. Uma conduta que não carece, ela mesma, de razoabilidade.


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