Opinião Clóvis Cavalcanti: Reservas da natureza e exploração mineral Clóvis Cavalcanti é Presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica (ISEE)

Por: Diario de Pernambuco

Publicado em: 16/09/2017 08:34 Atualizado em:


Em 1972, numa conversa comigo depois de almoço em sua casa, Moura Cavalcanti (1925-1994), que seria governador de Pernambuco (1975-1979), me contou uma história incrível. Em 1961, jovem, foi nomeado pelo presidente Jânio Quadros, governador do Território Federal do Amapá. Escolha que ele não tinha cogitado. Aceitou, porém, o encargo. Na ocasião, o Amapá se destacava por uma única coisa – além do fato de ser a unidade federada mais isolada (e preservada) do Brasil –, a atividade de extração do minério do manganês, um ingrediente básico da siderurgia. Explorava esse recurso, a empresa chamada Icomi (Indústria e Comércio de Minério), controlada pelo então maior consumidor de manganês do mundo, a norte-americana Bethlehem Steel. Das receitas de exportação do produto estratégico, uma fração de 4-5% era devida por contrato como royalties para o tesouro do Território Federal.

Em agosto de 1961, Moura Cavalcanti recebeu denúncia de que havia subfaturamento – prática comum no mundo – nas informações sobre montantes do manganês exportado, resultando, portanto, em pagamentos inferiores aos que eram devidos ao Amapá. Como governador, resolveu ir pessoalmente à mina da Icomi, no lugar conhecido como Serra do Navio, a pouco menos de 200 km de Macapá, a capital, para fazer uma inspeção. Na época, tudo era muito simplificado, ainda mais em fronteira tão distante do país. Moura viajou num “jipão” só com o motorista e um ajudante de ordens. Chegando ao portão da Icomi, teve que parar devido a uma cancela fechada. O guarda de plantão explicou ao governador que não era permitida a entrada de ninguém ali, a não ser com autorização da empresa. Moura explicou que era o governador; não poderia ser barrado. Mas foi. Meio moleque, mandou o motorista recuar e investir com toda potência contra a cancela fechada. Isso foi feito, o portão derrubado. Ele pôde fazer a inspeção no escritório da empresa, onde foi atendido no que lhe interessava, percebendo irregularidades contábeis no tocante às exportações do minério. De volta a Macapá, já havia em seu gabinete recado do presidente Jânio pedindo que retornasse uma ligação por este feita (via rádio). Ao falar com Jânio (admirado com a rapidez com que o episódio chegara a Brasília), Moura contou ter recebido de saída uma reprimenda, sendo chamado de atrabiliário. Mas pôde explicar ao presidente o que acontecia. Jânio então lhe deu apoio. Só que, uma semana depois, renunciou e Moura Cavalcanti foi destituído do cargo. O subfaturamento prosseguiu.

Fiz o relato acima para evidenciar que o negócio da exploração mineral é algo que costuma usar artimanhas condenáveis a fim de lograr seus propósitos. E para questionar a decisão autocrática do governo federal, de 22/8/2017, de extinguir a Reserva Nacional do Cobre e seus associados (Renca), cobrindo uma área de 4,7 milhões de hectares dos estados do Amapá e Pará, em que se localizam nove áreas protegidas, inclusive a belíssima Serra de Tumucumaque, pouco conhecida dos brasileiros. É certo que o decreto, já modificado, não extingue tais áreas e adverte que a legislação de proteção ambiental terá que ser cumprida. Mas quem é que imagina que a mineração ocorrerá de forma benigna, deixando pouco rastro de destruição? Basta ver o terrível exemplo do maior desastre ambiental brasileiro, causado por uma mina de minério de ferro no município de Mariana (Minas Gerais), de propriedade da empresa Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela australiana BHP Billiton, em novembro de 2015. A devastação causada, além de matar seres humanos, significou a morte do portentoso Rio Doce e de todo o ecossistema ribeirinho da barragem que estourou até a foz do Doce, no Espírito Santo. Trata-se de uma tragédia de dimensão incalculável.

Quem ganha com a exploração mineral como a da Samarco? Quem perde com ela? A Icomi faturou com o manganês da Serra do Navio de 1957 a 1995, quando acabou o minério. Seus acionistas engordaram seu patrimônio. No lugar do manganês cavou-se um buraco eterno. Que ganharam de duradouro a sociedade amapaense e a sociedade brasileira com o prejuízo físico, ambiental, irreversível que foi causado a seu território? Essa realidade, a de Mariana e a de muitos outros casos no mundo inteiro impõem que não se aceite a canetada maldita da extinção da Renca. Moura Cavalcanti, com quem briguei em 1975 por causa de Suape, deveria ter algo a dizer agora. 



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