Opinião Luzilá Gonçalves Ferreira: Sobre Aeroportos II Luzilá Gonçalves Ferreira é doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 17/08/2017 07:29 Atualizado em:

O avião dá voltas, lá embaixo a paisagem linda: campos verdes, ou em repouso, tudo tão dividido, tão certinho, lotes desiguais, bem demarcados, pequenos, séculos de culturas repetem gestos dos antepassados, o mesmo modo de plantar, de colher, sem ganas de riqueza, a vida simples, despreocupada, apegada à terra, penso no poeta Aragon, que em meio aos combates durante a ocupação nazista cantava a Douce France da Chanson de Roland, retomada em parte por Charles Trenet. Je vous salue ma France. Mas a gente esquece que os tempos são outros, passou o tempo da delicadeza, cantado por Chico. A prova: a incrível multidão que aguarda, rebanho de ovelhinhas, avançando mais que devagar, no curral entre cordas, o lento controle de passaportes e bagagem (não há um jeito, digamos, mais eletrônico, pra tudo isso ser mais rápido?). Atravesso a porta que detecta irregularidades. Pedem pra retirar anel, brincos, colar (imitação de ouro, claro). Obedeço. E a surpresa: A senhora vá por ali. Vou. Mexem e remexem a bagagem de mão, o policial passa um pó branco nos dedos, chama um colega, consultam-se, esta senhora idosa deve ser menos inocente do que parece. Tire o sapato, obedeço. Ande na ponta dos pés. Obedeço. Me passam um detecteur de não sei o que, da cabeça aos pés, eu me sentindo a própria senhora indigna, (La vieille dame indigne) do filme de René Allio. Depois vem uma bela francesa de além mar, (d’outre- mer), que evidentemente não pode brincar em serviço. Me olha desconfiada, de novo o detecteur, nos ombros, nas pernas, ai de mim. Por várias vezes, juro, passa os dedos nos meus cabelos (como no samba de Orestes Barbosa), meu xampu brasileiro deve ter cheiro de alguma droga, quem diria. Resumo da história: perdemos a conexão, meu filho chega, mãe, foi a última chamada, nós dois quase suplicantes. E o policial: Je fais mon travail, madame (estou fazendo meu trabalho, senhora). Mais tarde, sobrevoando a República Tcheca, colinas e mais colinas, florestas e mais florestas de um verde escuro. E no aeroporto nenhum controle de bagagem ou passaporte, mas sorrisos, boas vindas. É verdade sim: os tempos são outros.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL