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Opinião Márcia Mª G. Alcoforado de Moraes: O Cão sem Plumas de Deborah Colker e Cláudio Assis Márcia Mª G. Alcoforado de Moraes é pós-Doutora pela University of Illinois at Urbana-Champaign UIUC/ EUA, Doutora em Economia pela UFPE e professora associado da Universidade Federal de Pernambuco

Publicado em: 22/06/2017 07:24 Atualizado em: 22/06/2017 07:26

Escrevo nessa manhã, como acho que disse algo parecido certa vez Clarice Lispector, para não me afogar em mim mesma. Dois dias depois de assistir ao Cão sem Plumas, poema de João Cabral, numa montagem de Deborah Colker e Cláudio Assis, ainda me sinto inquieta, ansiosa e definitivamente diferente. Uma inquietude que não se acalma, uma ânsia de compreender sem racionalizar, uma premência de internalizar todo o infinito com que me deparei naquela noite de domingo num teatro no Recife.

Desde o primeiro momento do espetáculo me vi tomada por uma sensação nunca antes vivenciada diante de uma expressão artística. Confesso que me sinto privilegiada, pois já vi, ouvi e assisti muitas delas aqui e pelo mundo. Diante de algumas me senti fortalecida, diante de outras, orgulhosa de pertencer à raça humana. Inúmeras delas me comoveram, mas tenho que admitir nenhuma antes me fez experimentar as sensações que vivenciei diante do Cão de Deborah e Cláudio. Acho que escrevo na busca do entendimento dessas emoções. Não seria essa uma das funções da literatura, por mais incipiente e pouco rebuscada que seja? Logo eu que gosto das palavras, que tenho facilidade em encadeá-las em sequências lógicas, foi diante de poucas delas (apenas alguns trechos do poema são lidos por Jorge, Lirinha e Louise Taynã) que me vi entregue, até entorpecida, completamente arrebatada por imagens, sons e corpos em movimento. Não me peçam para descrever a sequência do que vi, muito menos a racionalidade pois não tenho como fazê-lo. Só sei que senti. Senti algo profundo e transcendental que só posso associar ao sagrado.

A montagem parece nos querer lembrar do que somos feitos, da nossa essência. De fato enquanto se ouve um trecho do poema : “Difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem.”; um bailarino ou um homem-caranguejo ou simplesmente um ser humano afunda lentamente desde a margem lamacenta até águas mais profundas e então tudo se confunde: a terra, a água e a lama ou o barro de que somos feitos. Em outro momento, o filme ao fundo mostra um homem com uma serpente enrolada ao pescoço. A câmara se aproxima tanto que nos faz perder o medo, encoraja-nos a encará-la e finalmente a perceber sua infinita beleza. Parece nos guiar, incentivando-nos a não temer, mas sim reconhecer e admirar (quiçá incorporar) o que temos de mais selvagem em nosso interior. Absolutamente integrados – João com sua poesia, Assis com suas imagens e Deborah com suas coreografias – sugerem-nos talvez inconscientemente que devemos buscar a totalidade da experiência humana.
Segundo a psicóloga junguiana Lilian Wurzba, para o homem primitivo dançar era: “Vivenciar o sagrado, reviver o tempo primordial; fundar o mundo. Para o homem moderno não é em essência diferente. Ao mesmo tempo que se proclama não-religioso sua dança revela-se uma busca pelas origens.” A dança transportaria assim, segundo ela, não só ao dançarino, mas a quem o assiste, para uma outra realidade. Uma realidade em que a consciência perde a força e deixa o inconsciente assumir e preencher a nossa alma com o fundamental da vida. “É como se ressoasse em nós a voz de toda a humanidade”.

Nunca estive diante do painel de 15 metros de Cícero Dias, considerado sua obra-prima, mas depois daquela noite em que fui passada (atravessada) pela genialidade de João, Colker e Assis – exatamente como no poema de João Cabral foi a cidade passada pelo rio e a fruta pela espada - o título de Dias emprenhou-se de significado: “Eu vi o mundo.....ele começava no Recife”. 


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