Opinião Neuma Costa: Belchior: encontro de vozes Neuma Costa é professora aposentada do IFPE

Publicado em: 23/05/2017 07:22 Atualizado em:

A tentativa de evocar a obra de um compositor implica, necessariamente, remeter-se à relação homem x linguagem ? significa refletir sobre essa simbiose compreendida como ação que, antes de mais nada, proporciona a passagem do caos à ordem. Não há dúvida de que o ato de falar está fundamentado na própria origem e historicidade de uma instância conhecida como sapiens. Afinal, a linguagem foi a inscrição humana no mundo, e nenhuma característica é tão inerente à espécie quanto essa que nos faculta a interação com o Outro.

Foi esse salto qualitativo que proporcionou, entre outras coisas, o encontro e desencontro de vozes que falam e de outras que se calam. A voz desse poeta não emudeceu, ao contrário, ressoou pelos campos, montanhas e planícies: %u201CNão sou feliz, mas não sou mudo / hoje eu canto muito mais%u201D. Vale dizer que é uma palavra povoada e superpovoada de intenções de outrem, porque a poética de Belchior foi construída sempre na atmosfera do %u201Cjá dito%u201D, um fenômeno que a Linguística denomina dialogismo, ou seja, diálogo entre textos.

Na retomada da voz do outro, há sempre uma nova apreciação, como ocorre quando ele tenta desconstruir o discurso cartesiano (hegemonia da RAZÃO): %u201CNão queira o que a cabeça pensa; queira o que a alma deseja%u201D. E não foi só a dualidade razão x emoção que ocupou as páginas do referido compositor. Também se contrapôs à tese burguesa da acumulação de bens quando vaticinava em Paralelas: %u201CQuanto mais se multiplica trabalho e dinheiro mais se diminui o amor%u201D. Repete a desconstrução do discurso capitalista nos versos que seguem: %u201CE hoje eu sei que quem me deu a ideia de uma nova consciência e juventude / está em casa (...) contando os seus metais%u201D

Esse diálogo constante com outros textos denuncia a linguagem como encontro e luta, um corpo a corpo que vai gerando intrincadas redes de significações. Para reforçar essa teoria, recorremos à antológica frase de Bakhtin (Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1994): %u201CA palavra é a arena onde se confrontam os valores sociais%u201D. A vocação para o social marca, definitivamente, a produção de Belchior, porque sempre procura uma forma de transformar o texto em lugar por excelência de qualquer investigação sobre o homem e sua trajetória histórica.

Do ponto de vista existencial, não é raro flagrar-se um tom melancólico, saudosista, como se fora um gosto amargo de perdas: %u201CEu era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais / como um galo, quando havia galos, noites e quintais%u201D. Temos aí mais uma dualidade da condição humana, quer dizer, o embate entre optar pela simplicidade do campo ou enfrentar a ostentação urbana. E assim ele fala do olhar lacrimoso, que não tinha e hoje tem, quando se remete ao êxodo do interior para outras paragens ? uma travessia que o forçou a se distanciar do sonho e do sangue da América do Sul. A opção por esse horizonte cultural está evidente em: %u201Cum tango argentino me vai bem melhor que um blues%u201D.

Nos fragmentos acima destacados, pudemos flagrar a inscrição no discurso do outro, com a finalidade de desconstruir valores secularmente consagrados. Este é um exercício de releitura recorrente na poética em questão, bem marcada por um sentimento de aflição por não ter conseguido mudar a realidade: %u201CApesar de tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais%u201D. Finalmente, ao revisitar a mensagem do belchiorismo, pudemos antever, com bastante clareza, as divergentes relações discursivas à mercê das quais se move o sujeito, na %u201Ccondição contaminada%u201D de ser falante.

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