O depoimento afetuoso de Lula Arraes

Raimundo Carrero
Jornalista e membro da Academia Pernambucana de Letras.

Publicado em: 09/04/2024 03:00 Atualizado em: 08/04/2024 22:46

Parece um sonho, todo o livro parece um sonho,  desses sonhos que chegam em tal momento da madrugada, impossível estabelecer a hora exata, até porque estamos dormindo, mas que chega com a sensação de que ali começamos a viver, ou seja, a viver outra vida e que, no entanto, é a nossa vida – um sonho? Um momento? Uma volta espiritual, quem sabe um recomeço. Assim é este livro – O Senhor do Barco, deste mágico, deste bruxo Lula Arraes, que também começa – e nos ensina, envolto em sonho, que há sempre um sonho no ar nos pedindo que acorde, nos chamando para uma notícia que não queríamos ouvir nunca. Mas que, mesmo assim, e insistentemente, está ali, pedindo a nossa participação.

Portanto, este é mais, muito mais do que um livro, com o seu proustiano clima de sonho inacabado, nem começado, mesmo que nos leve ao seu personagem central, sem o costume de datas e de circunstancias, embora se revele ali o mundo de um família inteira acasalada a este senhor do Barco, a que se refere o título, não só o  Senhor do Barco, que é uma metáfora do mundo ou de uma nação, se levarmos em conta o sentimento místico que o envolve no coração do filho ou no coração da matéria de que nos fala o fabuloso  Granham Greene, em romance famoso, que nos conta a dramática história do Sr. Scobie que me traz de volta às leituras de adolescente. O adolescente do bairro da Torre, ainda bucólico, onde aprendi a amar a Natureza. Neste caso refiro-me a Greene e não Sr. Scobie, o personagem. O Senhor do Barco é muito mais forte, e muito mais real, embora um tanto místico nestas palavras.

Lembro-me das palavras: “Não temas, Eu estou aqui”, a que recorri no meu livro O senhor agora vai mudar de corpo, que narra a triste história do AVC que sofri em 2010. E que nos leva ao sentimento místico de Lula Arraes, ele próprio uma dessas pessoas comovidas pelo sentimento do mundo. Sem esquecer, portanto, o verso de Drummond citado pelo pai no discurso de Posse: “Eu só tenho duas mãos e o sentimento do mundo”, concluindo com uma frase de Vargas Llosa registrada pelo autor neste mesmo livro: “Não existe a identidade de um país, existe a identidade das pessoas”.

A frase de Cristo se repete muitas vezes, mas a primeira que li foi na multiplicação dos peixes, tento forçar minha memória. Feita  a multiplicação, os discípulos decidiram atravessar o rio e os ventos começaram a soprar com força. Quando perceberam que Jesus estavam ali entre eles, pediam: “Jesus, faça alguma coisa”. E o Senhor respondeu: “Não tenhas medo, Eu estou aqui”. Uma advertência a todos nós neste grande e velho mundo, quando somos atormentados pelos ventos fortes da estupidez e da desesperança, pela dor e pelo materialismo. É preciso ouvir a voz de Deus, o nosso Deus, o magnífico e eterno.

Para Lula Arraes, o pai era – e sempre foi - este Senhor do Barco.  Tanto é assim, que o propósito do seu livro era sobrevoar brevemente a vida no exilio, o entrosamento e as várias nacionalidades. A vida fora e tantas outras coisas. Falo do meu pai. Preciso falar dele, na impossibilidade de falar com ele.” “E outra frase perpassa toda a obra. Sinto saudades do meu pai”. Não há nada mais forte aqui. O livro derrama toda a dor e todo o amor do filho.

MAIS NOTÍCIAS DO CANAL