A encruzilhada de Ulisses
Aldo Paes Barreto
Jornalista
Publicado em: 13/09/2024 03:00 Atualizado em: 13/09/2024 04:55
Ulisses tinha uma oficina mecânica lá para as bandas da Encruzilhada, nas franjas do território livre e afetivo da minha adolescência, a Vila do Ipase. Com as mãos cheias de graxa e um jogo de chaves, era capaz de montar e desmontar um carro. Sem nunca ter frequentado escola, Ulisses havia aprendido o ofício com os Peixoto, da Imperial Diesel. Antes da injeção de combustível, nos tempos do velho carburador, freguesia não faltava. Ganhou bom dinheiro. Comprou o terreno da oficina, colocou telhado, letreiro e, vez por outra, curtia os prazeres da noite, que de ferro só os carros.
Ulisses gostava de gente, de conversar na barraca do seu Joaquim, de apreciar as peladas que aconteciam no campinho em frente à oficina, torcer pelo time de Zildo e pelo Sport Clube do seu Recife. Enfim, Ulisses amava a vida. Raparigueiro, farrista, para ele o amanhã era ver sol nascer radiante, sem nuvens para prenunciar chuvas. Ele fora vítima da Grande Cheia de 1975, a tragédia que inundou o Recife. Recuperou-se. Era bom profissional, modesto no vestir, nos hábitos, humilde no trato com as pessoas.
Vivia em precário quartinho na oficina. Certa manhã acordou com um garoto dormindo no banco de um dos carros. Quis enxotar. Mas, deixou pra lá. O garoto não tinha pai e a mãe morrera na tragédia da enchente. O jovem foi ficando e aprendendo. Começou limpando o chão. Depois, lavava e guardava as ferramentas. Passou a ajudante do mestre. Aprendia rápido. Virou mecânico. Era esperto.
Dias desses encontrei Ulisses, carregava uma flanela desbotada nos ombros curvados, conduzindo as agruras e a desesperança dos 80 anos que já vivera. Trôpego, estacionava carros sem convicção nas proximidades do Campo do Sport. Reconheci. Não havia mais oficina. “Lembra do garoto? ”, perguntou. Lembrava. “Pois é... ele se juntou com um advogado esperto, entrou na Justiça e tive que fazer acordo para não ser preso por exploração de menor. Vendi o terreno, fechei a oficina e ainda tô devendo, tomando umas caninhas para não lembrar. Tentei de tudo, sempre procurando a Justiça. Nunca encontrei”.
O garoto, hoje homem feito, não me conhece. Está bem, sempre foi muito esperto. O advogado melhor ainda.
Na saída do estádio lotado, Ulisses esquece os carros para desfilar seu rosário de queixas. Baixinho, carapinha branca, rosto encovado, nada lembrava o mecânico habilidoso. Outro cliente, contou Ulisses, ainda tentou ajuda-lo, dizendo que a justiça demorava. Era assim mesmo. Muita gente buscando reparação ao mesmo tempo. Não é novidade. Há mais de cem anos, Ruy Barbosa alertava que “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Quase nada mudou desde aquele tempo, me contou dr. Bruno, querendo me animar.
De qualquer maneira, vivi a vida. Aproveitei. Na velhice, ainda fiquei sabendo de muitas coisas. Pessoas do bem que ainda existem. Daqueles meninos da Vila, hoje doutores, lembram de mim e me ajudam. Tem muita gente boa. Tem até um pastor evangélico, que morava nas vizinhanças. Mas esse pede e fala muito em Deus, em Jesus.
Com ele aprendi que nenhuma letra da palavra “pobre” faz parte da palavra “Justiça”. Mas o pastor não sabe disso.
Ulisses gostava de gente, de conversar na barraca do seu Joaquim, de apreciar as peladas que aconteciam no campinho em frente à oficina, torcer pelo time de Zildo e pelo Sport Clube do seu Recife. Enfim, Ulisses amava a vida. Raparigueiro, farrista, para ele o amanhã era ver sol nascer radiante, sem nuvens para prenunciar chuvas. Ele fora vítima da Grande Cheia de 1975, a tragédia que inundou o Recife. Recuperou-se. Era bom profissional, modesto no vestir, nos hábitos, humilde no trato com as pessoas.
Vivia em precário quartinho na oficina. Certa manhã acordou com um garoto dormindo no banco de um dos carros. Quis enxotar. Mas, deixou pra lá. O garoto não tinha pai e a mãe morrera na tragédia da enchente. O jovem foi ficando e aprendendo. Começou limpando o chão. Depois, lavava e guardava as ferramentas. Passou a ajudante do mestre. Aprendia rápido. Virou mecânico. Era esperto.
Dias desses encontrei Ulisses, carregava uma flanela desbotada nos ombros curvados, conduzindo as agruras e a desesperança dos 80 anos que já vivera. Trôpego, estacionava carros sem convicção nas proximidades do Campo do Sport. Reconheci. Não havia mais oficina. “Lembra do garoto? ”, perguntou. Lembrava. “Pois é... ele se juntou com um advogado esperto, entrou na Justiça e tive que fazer acordo para não ser preso por exploração de menor. Vendi o terreno, fechei a oficina e ainda tô devendo, tomando umas caninhas para não lembrar. Tentei de tudo, sempre procurando a Justiça. Nunca encontrei”.
O garoto, hoje homem feito, não me conhece. Está bem, sempre foi muito esperto. O advogado melhor ainda.
Na saída do estádio lotado, Ulisses esquece os carros para desfilar seu rosário de queixas. Baixinho, carapinha branca, rosto encovado, nada lembrava o mecânico habilidoso. Outro cliente, contou Ulisses, ainda tentou ajuda-lo, dizendo que a justiça demorava. Era assim mesmo. Muita gente buscando reparação ao mesmo tempo. Não é novidade. Há mais de cem anos, Ruy Barbosa alertava que “Justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”. Quase nada mudou desde aquele tempo, me contou dr. Bruno, querendo me animar.
De qualquer maneira, vivi a vida. Aproveitei. Na velhice, ainda fiquei sabendo de muitas coisas. Pessoas do bem que ainda existem. Daqueles meninos da Vila, hoje doutores, lembram de mim e me ajudam. Tem muita gente boa. Tem até um pastor evangélico, que morava nas vizinhanças. Mas esse pede e fala muito em Deus, em Jesus.
Com ele aprendi que nenhuma letra da palavra “pobre” faz parte da palavra “Justiça”. Mas o pastor não sabe disso.
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