Em foco

O rei agora calça as sandálias do tempo

Pelé entra em palco empurrando andador e encara equipamento como nova chuteira dada por Deus

Publicado em: 17/01/2018 07:25

Arte: Silvino /DP
Se alguém no Brasil pode falar de glórias, este alguém é Pelé. No entanto, o que são elas, perto do tempo? Sem sombra de dúvida, o cérebro possui enormes defesas contra a consciência permanente do que uma velhice problemática e a morte significam, mas aqui e ali, no dia a dia, exemplos nos lembram e convidam a inevitável reflexão: não havendo nada que resista aos dois – tempo e morte –, por que não viver o presente de forma plena, permitindo-se crescer espiritualmente ao concluir, como diria Gilberto Gil, que a estrada, ao final, vai dar em nada? Ver o eterno rei do futebol, aos 77 anos, entrar empurrando um andador no palco onde acontecia a cerimônia de lançamento do Campeonato Carioca 2018, foi como receber uma aula de humildade diante da precária condição humana.

Os pés de incontáveis milhões de dólares usam agora “chuteira” diferente, segundo concluiu o dono ao desistir de trocar o equipamento por um acompanhante. Decidiu assim por crer que se Deus o estava calçando de outro modo, não teria motivo para negar a nova condição. Ao menos na frente da imprensa e da mídia, o homenageado sempre se portou de forma simpática e tranquila, mas, depois de quase oito anos sofrendo com problemas nos joelhos e na coluna, a energia era outra, lembrava apenas que o tempo nunca deixará de ser inexorável.

As provas são tantas, mas algumas imagens ficam marcadas de forma mais contundente na memória, talvez pelo entusiasmo com que os protagonistas se conduziram profissional e pessoalmente ao longo dos anos. Caso da cantora argentina Mercedes Sosa, um dos maiores ídolos da canção latino-americana, que mobilizava multidões em seus shows por países de língua espanhola e portuguesa, nas décadas de maior efervescência política. Mercedes era um grito vibrante de protesto contra a opressão sobre o povo pobre do continente, mas, também, uma voz que alertava quanto aos efeitos da maturidade: El tiempo pasa, nos vamos poniendo viejos (o tempo passa, nós vamos envelhecendo), cantava ela no auge da carreira e o fazia com tamanha graça e leveza que parecia eterna. 

Para os fãs, foi duro vê-la chegar aos palcos em uma cadeira de rodas, mas garantia que iria cantar assim mesmo, enquanto pudesse, e o fez até duas semanas antes de sua morte, em 4 de outubro de 2009. A obstinação de La Negra em cumprir o seu destino de cigarra, com todas as limitações físicas decorrentes da saúde precária, arrancava aplausos escancarados, mas, também, incredulidade e inquietação em quem não costuma olhar de frente para a estrada já caminhada.

Assim, o espanto resumido na frase “quem te viu, quem te vê”, segue causando estranheza como se a ordem fosse acreditar que sempre existirá amanhã e que ele nos encontrará lépidos e fagueiros, fora do alcance do poder destruidor dos dias. Fugir de realidades capitais para escapar da dor é legítimo, mas não sábio, porque assim se desperdiça a chance de aprender a ser e viver melhor. Se a vida é única, ao menos pela ótica da ciência, há que entender o óbvio: no fim das contas, reis e súditos calçam as sandálias do tempo, com a diferença de que sofre menos quem souber usá-las sentindo-se ao menos grato por haver chegado até ali. Pelé parece ser um desses.
TAGS: andador | idade | pele | futebol |
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL